Fernão Lopes: A Concepção da História
«(…) O fogo tem-se centrado nas
covas de lobo, descobertas no campo de Aljubarrota e que Fernão Lopes
omitiu. Também Ayala, e esteve na batalha, e do outro lado, as omitiu.
Mas é Lopes quem recebe o fogo. Não pretendo envolver-me na Batalha de Aljubarrota. Lembro
apenas e novamente que Ayala se esqueceu das covas de lobo. Lembro que franceses e castelhanos já as
conheciam da Guerra dos Cem Anos: Crécy, Poitiers. Lembro que só
aceitando implicitamente as covas de lobo
podemos compreender a afirmação: E se em este
passo achardes escrito que os castelhanos cortaram as lanças e as fizeram mais
curtas do que traziam, havei que é certo e não duvideis, porque muitos,
cuidando de pelejar a cavalo, quando viram a batalha pé terra, por se
desenvolver e ajudar melhor delas as talhavom, que lhes depois mais empeceu que
aproveitou. E noutro passo: E se a
[batalha] eles mui mal ordenarom, como alguns por sua escusa escrevem, culpa de
quantos bons aí vinham, e de todos os estrangeiros, que Pero Lopes (Ayala)
gabou ao conde que tão sabedores eram de guerra.
As covas de lobo e
outras artimanhas não estariam implícitas na
boa ordenação das batalhas? Aquele passo termina com as palavras: Mas porque se a causa nunca tão bem
declara por semelhança como por ela mesma, assim nós, que o tão bem por
escritura dizer não podemos como aconteceu, o mostramos aqui figurado da guisa
como estavam postas. Mais uma vez a diferença entre o acontecimento e a
descrição do acontecimento. Ainda quanto à verdade, opõem alguns contra a credibilidade
de Fernão Lopes o facto de ter escrito a Crónica de D. João I 60 anos
depois dos acontecimentos. Estes que objectam estão a 600 anos e quem os
ouvir, a verdade está com eles. Depois, a Crónica de D. Pedro I e a Crónica
de D. Fernando foram escritas ainda com maior intervalo, mas tal facto
não inquieta estes críticos sensíveis. Temos de ver é se os documentos e os
outros testemunhos epocais concordam ou infirmam os acontecimentos narrados por
Fernão Lopes. Se concordam, objectar, 600 anos depois, que o relato foi
escrito 60 anos mais tarde é pura música celestial. Fernão Lopes usa já
os nossos processos, serve-se dos documentos de que viveu rodeado a vida
inteira e usa os testemunhos, dos vivos e dos filhos dos vivos, mesmo que possamos
fazer alguns reparos ao seu tratamento crítico. Quanto a defender que Fernão
Lopes escreve 1383 tendo nos olhos o
modelo da revolução de 1439, é confundir abusadoramente os planos. Uma
coisa é a agudeza de visão e a liberdade informativa e interpretativa aberta
pela revolução de 1439 e outra muito
diferente é transportar modelos. Basta ler Pero Lopes de Ayala para vermos que
os acontecimentos de 1383 narrados por
Fernão Lopes têm um percurso próprio.
Aliás, a este propósito, defendemos noutro escrito que os borrões de
que se serviu Rui de Pina para escrever a Crónica de D. Afonso V com os
episódios da revolução de l439
deveriam ter partido da pena de Fernão Lopes. As conhecidas palavras de Damião
de Góis, referentes a Rui de Pina, suportam grandemente a verosimilhança de tal
hipótese. Fernão Lopes herda e cria,
descobre acontecimentos, ordena histórias. Mas não só. Interpreta.
Assim, por exemplo, no que concerne aos acontecimentos que designamos como revolução de 1383, Fernão Lopes escreve
que o movimento popular é desencadeado por um núcleo de aliados em que se destacam Álvaro Pais, o concelho de Lisboa e o
Mestre de Avis. Coloca o motor dos acontecimentos na contradição que opõe o ajuntamento dos pequenos povos, a que
chamavam naquele tempo arraia-miúda
aos grandes que escarneciam dos
pequenos e lhes chamavam povo do Messias de Lisboa. A acção do povo
miúdo é determinante, vencendo as hesitações da gente comunal, isto é, dos dirigentes do comum ou comuna ou concelho, a
quem impõem a direcção política e o comprometimento com a revolução.
Os acontecimentos desembocam na intervenção estrangeira. E uma longa
guerra de independência nacional acompanhará a cruenta guerra civil: uns portugueses quererem destruir os
outros; a mor parte de Portugal
contra um pequeno Portugal que ficava; oh que forte cousa e mortal guerra! Ver uns portugueses quererem destruir
os outros! e aquele que um ventre gerou e uma terra deu criamento desejar de se
matar de vontade, e espargir o sangue de seus dívidos e parentes!» In
António Borges Coelho, A Revolução de 1383, Editorial Caminho, Colecção
Universitária, 1984.
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