quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

Carta a D. Luís sobre as Vantagens de ser Assassinado. Fialho de Almeida. «… não tendo feito no decurso de um ano, outra coisa que não seja abrir e fechar cortes, levar salvas a bordo, e tapar e destapar ladrões e tolos, ‘consoante a matula dos gabinetes que governam?’ Com o tirázio era outro asseio…»

Cortesia de wikipedia 

O seu enterro
«(…) Convenhamos porém, que apesar do meu dito, eu não fujo a reconhecer em V. M. algumas preciosíssimas qualidades de reinante. E comigo o povo, real senhor. Lá quanto a isso, em verdade, muito obrigados lh’estamos. Por bem da pátria, já V. M. traduziu tão mal Shakespeare, que esfriou em nós o fetichismo pelas obras-primas estrangeiras, subtil maneira esta de V. M. reconduzir o gosto à exclusiva adoração das nacionais! E  este belo exemplo, se não vale o das peúgas de seu tio Pedro, reveste pelo menos uma flamância de amor pátrio, digna de intervir os desdéns antilusitanos do vencido da vida Ramalho Ortigão. Mas, meu senhor, se o culto infeliz das belas-letras inabilitasse os monarcas para as ameixas dos sicários, estaria o imperador do Brasil mais que nenhum outro livre e isento de tais frutos, em razão das esquírolas poéticas que intermitentemente exgrega pr’ás gazetas: e viu V. M. como Adriano lhe afinfou com um, sem grandemente acatar a sonetaria imperial!
Se Quincey rimou as excelências do assassinato como obra de arte, V. M., assíduo intérprete da poesia trágica de Além-Mancha, podia bem trazer a vernáculo este poema, preambulando-o de uma fala em que enaltecesse o regicídio como obra de política. Era trabalho onde o meu rei despejaria a contento geral as asneiras que lhe tivessem sobrado dos seus outros trabalhos literários, e que podia sugerir talvez a Gualdino Gomes, por via do rancor plumitivo, o tirázio que V. M. jamais pechinchará do Consiglieri Pedroso, mercê do jacobino. Oh meu senhor, habilite-se! Uma reles bomba que seja. Para o efeito moral até um busca-pé seria bastante. Não faça caso das precauções da medicina, venha à cidade repontar c’o Zé Povinho, chamar-nos tipos, dar canelões nas nossas mulheres, fazer enfim pelo tirázio enquanto é tempo. Nestas coisas de martírio, só a primeira abordagem custa um pouco. Que transtorno faria a V. M. um balázio, sabendo a ovação que abichava depois de morto?
Ah, que vida monótona tem sido a de V. M…. jantarinhos de canja magra no quarto, violoncelo quando vão artistas de S. Carlos, e como hors-d’oeuvre, a pouca vergonhazinha extra matrimonial às quintas-feiras!... V. M. carece de sair quanto antes dessa apatia. Um brasileiro, senhor, não usufrui maior ripanço do que o meu rei sentado nesse trono, e com a marrafa a dividir-lhe o crânio em duas metades paralelamente encarquilhadas. E quando os republicanos cuspirem à face de V. M. os 360 contos da sua doação, como há-de V. M. justificar essa maqui auferida dos erários, não tendo feito no decurso de um ano, outra coisa que não seja abrir e fechar cortes, levar salvas a bordo, e tapar e destapar ladrões e tolos, consoante a matula dos gabinetes que governam? Com o tirázio era outro asseio. Pela tentativa de regicídio, disse Guizot, a inofensividade dos reis cola-se à veneração dos povos, como um rebotalho de trampa à barriga de um macaco: e os povos tanto esgatanham nessa veneração, que acabam por abrir-se o ventre, sem que a mistela de lá saia e deixe de feder. Se, por consequência, V. M. está resolvido a aceitar o alvitre da sua próxima eliminação, por via Lefaucheux, e não achar sicário idóneo que lhe expeça um balázio aos quartos posteriores, daqui me ofereço eu com toda a lealdade, certo de que V. M. não haverá que dizer do trabalhinho». In Fialho de Almeida, Carta a D. Luís sobre as Vantagens de ser Assassinado, Assírio Alvim, Lisboa, 2010, ISBN 978-972-37-1441-8. 
 
Cortesia de Assírio Alvim/JDACT