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«As descobertas
científicas situam-se às vezes numa teia de acontecimentos comezinhos,
anedóticos e até burlescos. Empregando a expressão descobertas científicas num artigo sobre o Tratado de Confissom, não me proponho reivindicar o diploma
de descobridor do primeiro livro, até
hoje conhecido, impresso na nossa língua, embora identificar queira
dizer, neste contexto, descobrir. O agricultor que, trabalhando
numa sua quintarola, desenterra um mármore grego ou romano tem méritos indiscutíveis,
mas só o arqueólogo que, pela sua ciência e experiência, seja capaz de definir
a caracterização estilística da estátua e situá-la rigorosamente na sua época,
pode ser tido como seu verdadeiro descobridor. O homem que a encontrou nas
leivas da sua várzea limitou-se a desenterrá-la. Pediram-me um artigo sobre o Tratado de Confissom. Redigi-lo não
seria talvez muito difícil, já que o estudei longamente e com grande atenção e
sobre ele tenho publicado trabalhos vários e, até, um largo estudo editado em
tradução francesa no meu livro Humanisme
et Renaissance, - Les deux regards de Janus. Mas a história deste
achado bibliográfico nunca foi contada. Valerá a pena fazê-lo hic et nunc.
Nos primeiros meses do
já longínquo ano de 1965, corria insistentemente,
entre os alfarrabistas de Lisboa, o rumor de se haver encontrado um incunábulo
em língua portuguesa anterior ao De
uita Christi (Lisboa, 1495), livro que era, até então,
considerado como a primeira obra impressa no nosso idioma. O De uita Christi é um
cimélio extraordinário por uma série de razões que concorrem neste genuíno
momento da nossa prototipografia:
- O seu formato, sendo o in-folio, impõe-no imediatamente como um livro grande, sendo ao mesmo tempo um grande livro;
- A sua beleza gráfica e iconográfica é excepcional. Os caracteres são talhados num gótico robusto e claro, impressos a duas colunas num papel consistente e resistente, enquanto as gravuras, pela sua nobreza estilística e pela sua inspiração expressiva são dignas de um grandíssimo artista;
- Apesar do título latino, o texto é em vernáculo e é um documento valiosíssimo para o estudo do nosso idioma, então a sair da sua infância.
Seria possível que outro
livro, sem a beleza daquele, viesse destroná-lo como primeira obra impressa, nem em hebraico nem em latim mas na nossa
língua? Reflectia, de mim para comigo, que seria lamentável que um
opúsculo insignificante pelas suas características gráficas, se esse fosse
verdadeiramente o caso, colocasse em segundo lugar na ordem da hierarquia
cronológica aquele que é sem discussão um dos mais belos cimélios de toda a
tipografia europeia. Por outro lado, porém, eu era forçado a reconhecer que, se
isso ocorresse, ter-se-ia a compensação de um achado de extraordinário valor
pelas perspectivas novas que, assim, poderiam abrir-se. Alguns livreiros amigos
segredavam-me, contudo, que se tratava de um pretenso incunábulo ou de um
pseudo incunábulo, para não dizer um incunábulo falso. Perante estes
rumores, com a minha experiência e o meu conhecimento da tipografia quatrocentista,
não hesitava exprimir o meu cepticismo.
De facto nada é mais
difícil, em termos de restauro arqueológico, do que forjar um incunábulo
a partir dos materiais gráficos do nosso tempo, dando-lhe, no século XX, todos
os caracteres de um livro do século XV. Rejuvenescer uma amadurecida matrona de
70 anos fazendo-a recuar ao viço de mulher trintona é decerto menos difícil do
que efectuar, com êxito, a operação de falsificar um livro nosso contemporâneo dotando-o da frescura, da pátina e da beleza
de um cimélio do Quattrocento.
Como quer que seja, não sabendo como proceder para apurar a verdade e remontar
às origens, fui aguardando. Tinha a certeza íntima de que, mais tarde ou mais cedo,
o livro viria ao meu encontro. Os objectos nobres procuram, com efeito, e
acabam por encontrar as pessoas que os amam: eu não alimentava qualquer dúvida
a esse respeito. Na Lisboa de 1965, e
já, de verdade, na Lisboa de 1960, havia
talvez estudiosos mais sabedores do que eu no domínio da bibliologia e da bibliografia;
mas eu reivindicava, com a minha juventude de então, afirmativa e ingénua,
o primeiro lugar em termos de amor autêntico consagrado aos livros antigos: na
minha incomensurável suficiência, colocava o comandante Ernesto Vilhena em
segundo lugar e o visconde da Trindade em terceiro». In José Pina Martins, De como
Identifiquei o Tratado de Confissom, Chaves 8. VIII, 1489, Revista ICALP, vol.
15, 1989.
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