Filosofia e espiritualidade em S. António de Lisboa
«(…) Aliás, esta imagem do círculo é bastante fecunda no pensamento
medieval, constituindo um eco do neoplatonismo. Deus é o centro de um círculo
de onde tudo emana e para onde tudo se dirige, sendo nessa ordem do fim, ou seja,
da finalidade do homem que se concentra toda a espiritualidade franciscana, a
qual sendo de raiz agostiniana dela divergirá sobretudo no modo como encara a perspectiva
da interioridade. Em contrapartida, o mundo é assim chamado por estar sempre em
movimento, nenhum repouso sendo consentido aos seus elementos. Assim, quando
critica a filosofia entendida como sabedoria do mundo, está-se a referir ao
saber que se faz sem Deus, em orgulhosa autonomia, um saber filosófico que se
não constrói no quadro daquela dócil humildade da razão, que reconhece no
conteúdo da revelação a sua mais firme garantia contra o erro.
Dai a relação que propõe entre a ciência sagrada e as ciências profanas
no Prólogo dos Sermões Dominicais.
A plenitude da ciência está contida no Velho e no Novo Testamento. Só a
sabedoria que deles emana poderá fazer os sábios, logo, como o ouro está acima de todos os metais, assim a ciência sagrada
sobressai a toda a ciência. É por isso que, como diz Francisco Gama Caeiro,
o pensamento medieval se constitui, em boa medida, como uma exegese, a qual
possuindo uma necessária dimensão técnica, não se reduz a um mero processo técnico,
pois que a Bíblia representa um verdadeiro mundo cultural, sendo perante esse
mundo que o homem vive e pensa. A imagem que nos dá Santo António a propósito
de ambos os testamentos e da unidade que lhes subjaz é a este respeito
esclarecedora: trata-se de uma roda no meio de outra roda e do espírito da vida que está nas
rodas, o qual identifica com Deus.
Os processos exegéticos dos quais emergirá o problema dos vários
sentidos da Escritura, nomeadamente o sentido moral, que o Santo claramente privilegia,
partem dessa possibilidade de passar da letra para o espírito, num quadro em
que a palavra tende a ser encarada como um sinal visível de uma coisa ou ideia
que se não vê, instaurando uma tendência ad extra, que transforma o
simbolismo numa realidade constitutiva do cristianismo. O simbolismo é um caso
limite do conhecimento indirecto, é um procedimento eufemístico de abertura do
finito ao infinito, é, neste caso, um processo de libertação espiritual, em
direcção àquele mesmo espírito da vida
que informa o texto. Todavia, no franciscanismo e na obra de Santo António em
particular, esse processo de libertação que se exerce pela via da interioridade
não configura um recolhimento ou uma fuga à situação do homem como ser que não
sendo do mundo é, no entanto, um ser no mundo. O mundo humano não é encarado
como fechado sobre si próprio, verificando-se um movimento de abertura e de
relação a tudo o que o cerca, no âmbito de um já muito vincado optimismo na
valorização da criação como obra de Deus, ou da natureza entendida como o
conjunto das coisas criadas, embora essa mesma abertura e relação não configure
em caso algum uma diluição da natureza humana num nível ontologicamente
inferior na escala dos seres, mas, antes, a valorização de cada nível na sua
dignidade própria». In Pedro Calafate, Metamorfoses da Palavra, Estudos sobre o pensamento
português e brasileiro, Temas Portugueses, Imprensa Nacional-Casa da Moeda,
Lisboa, 1998.
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