Goa
«(…) Têm eles alguma coisa de quixotesco, desse espírito fanfarrão de
outras eras, que revele um fundo não de todo pervertido. Não assaltam uma
propriedade, as mais das vezes, sem primeiro mandar avisar o dia e mesmo a hora
em que hão-de ir à mão armada exigir o dinheiro de que precisam. Se o
proprietário se não resigna a deixar em tal ou tal sítio a quantia exigida está
no risco de se ver atacado. Pela calada da noite, à luz de archotes, caminham
os salteadores para o local aprazado. Vão mascarados, ou com barbas postiças e
a cara pintada de carvão. Dispõem os vigias de modo que não sejam
surpreendidos, e um grupo dirige-se à porta principal de machados e alavancas.
Cada porta e janela do bairro tem um vigia, que ao menor sinal de socorro,
grita logo: cabardar! e não há outro remédio senão a gente ir deitar-se resignado.
Cá por fora, através do fumo e do sinistro clarão dos archotes, vêm-se grupos
de salteadores armados, bebendo, conversando. Já a porta vacila meio carbonizada;
da janela os inquilinos fazem fogo; atiram-se para dentro garrafas cheias de
pólvora e betume, e os gritos de zoi-deu! zoi-deu! ao som de
batuques, da singa e da fuzilaria, entra para a casa um limitado número de
salteadores e prende o dono. Se a resistência continua há lutas e mortes.
Seguro o homem, correm a casa toda, arrombando as caixas e recolhendo o
espólio. Tudo lhes serve, até o arroz. Raras vezes espoliam ou violam as
mulheres, aliás belas e adornadas de jóias, todas trémulas e sentadas de
cócoras a um canto da casa. Não falta, de entre os salteadores, um braço que as
defenda generosamente quando se ouse espoliá-las ou manchá-las.
A índole guerreira dos habitantes das Novas Conquistas, o seu
cavalheirismo, a sua bravura, a sua simpatia pelos portugueses, teriam sido
qualidades que outro governo mais sensato que o nosso teria aproveitado em prol
dos nossos interesses nessas partes da monarquia. Em vez de salteadores,
educando-os, regularizando o seu sistema económico e civil, teríamos nessa
gente aguerrida e generosa a melhor garantia da autonomia de Goa e um elemento de prosperidade
colonial. Para nossa vergonha, porém, tem havido quem, ignóbil e covardemente,
se tem prestado, com o único empenho de agradar à autoridade do distrito, a
manchar o nome português pela brutalidade e vilania com que tem trucidado mais
de uma cabeça dessas quadrilhas, faltando-se às promessas mais peremptórias da parre
do governo. O poético e heróico Custobá
foi uma dessas vítimas. Um bôtto
manchara a honra de sua família. Custobá
jurou vingar-se, e procurou ensejo de castigar o impúdico brâmane. O bôtto para se ver livre do braço
que o ameaçava, subornou testemunhas para imputar aleivosamente um crime
qualquer ao seu rival. Não faltou quem, movido de indignação contra o sacrílego
que assim ameaçava violar a pessoa do sacerdote, se prestasse ao miserando trama
do brâmane impudente. Custobá,
de grilheta aos pés, gemeu longos anos no arsenal de Goa, condenado a trabalhos forçados por um crime imaginário. Um dia
quebra os ferros e desaparece. Depois de poucos dias chega à capital a notícia
de que Custobá se colocara à
frente de uma poderosa quadrilha, devastando e arrasando tudo.
Fez-se o terror das Novas Conquistas, e o
seu terrível nome foi cantado pelo povo como de um malfeitor lendário. Com
efeito, foi um hábil guerrilheiro; um bravo montanhês. Saíra do cárcere como o
tigre da jaula, espumante de raiva e respirando vingança. Os anos de prisão
levara-os a premeditar um justo crime. Quando menos esperava, o bôtto cai-lhe aos pés, roto o
coração e os membros despedaçados. Depois, reúne um troço e embrenha-se nos matos,
de onde de tempos a tempos guiava o seu bando à pilhagem, ao assassínio e à
devastação. A fatalidade das coisas fizera-o de herói em salteador. Saciada,
porém, a sede da vingança, a onda de sangue que lhe inebria o cérebro esbate-se
na pálida visão do remorso. Queria regenerar-se, queria voltar ao saudoso lar
pelo qual se fizera assassino e ladrão, mas não pôde porque caiu num logro dos
agentes da autoridade, que o assassinaram cobardemente». In Frederico Diniz D’Ayalla, Goa
Antiga e Moderna, Ésquilo edições e multimédia, Revisão de Adalberto Alves,
2011, ISBN 978-989-719-001-8.
Para Ofélia e Álvaro José, que estejam em paz!
Cortesia de Ésquilo/JDACT