«(…) É certo que nada me subjuga tanto como o desaparecimento total de
Lautréamont atrás da sua obra, que tenho sempre presente no meu espírito o seu inexorável;
Tiques, tiques, tiques. Mas
para mim há algo de sobrenatural nas circunstâncias de um apagamento humano tão
completo. Seria demasiado vão aspirar a isso; aliás, convenço-me facilmente de
que semelhante ambição, naqueles que se entrincheiram atrás dela, revela um
ideal pouco honorável. À margem da narrativa que vou empreender, o meu único
desígnio é relatar os episódios mais relevantes da minha vida tal como posso concebe-la fora do seu
plano orgânico, ou seja, na medida exacta em que se abandona aos
acasos, ao mais pequeno como ao maior, e me introduz recalcitrando contra a
ideia comum que eu possa ter dele no mundo proibido das aproximações súbitas,
das petrificantes coincidências, dos reflexos que se avantajam a qualquer outro
impulso do espírito, dos relâmpagos que fariam ver, mas ver verdadeiramente, se não fossem mais rápidos ainda do que
os outros. Trata-se, sem dúvida, de factos de valor intrínseco pouco
controlável, de carácter absolutamente inesperado, violentamente incidente, que
pelo género de associações de ideias suspeitas que despertam constituem um modo
de nos fazer entrar na teia de aranha, quer dizer, na coisa que seria a mais
cintilante e graciosa do mundo se a um canto, ou nas imediações, não estivesse
a aranha; de factos que, pertencendo embora à ordem da constatação pura, tomam
sempre a aparência de um sinal desconhecido e me obrigam a descobrir, em plena
solidão, inverosímeis cumplicidades, convencendo-me estar iludido todas as
vezes que me julgo sozinho ao leme do navio. Devia estabelecer-se a hierarquia
destes factos, do mais simples ao mais complexo, desde o movimento especial,
indefinível, provocado em nós pela visão de objectos muito raros ou pela
chegada a certos lugares, movimento sempre acompanhado da sensação muito nítida
de depender dele, para nós, qualquer coisa de grave, de essencial, até à ausência
total de paz que nos valem certos encadeamentos, certos concursos de
circunstâncias que ultrapassam largamente o nosso entendimento e só admitem que
regressemos a uma actividade razoável quando apelamos na maioria dos casos, para
o instinto de conservação. Seria possível estabelecer uma série de escalões
intermediários entre estes factos-escorregadelas e estes factos-precipícios.
Deles, destes factos de que só consigo ser a testemunha espantada, até aos outros,
até àqueles de que me gabo ser capaz de discernir as relações e, em certa medida,
presumir as interferências, vai provavelmente a mesma distância que separa uma
dessas afirmações ou um desses conjuntos de afirmações que constituem a frase
ou o texto automático e a
afirmação, ou conjunto de afirmações, que constituem, para o mesmo observador,
a frase ou o texto cujos termos foram por ele maduramente reflectidos e
pesados. A sua responsabilidade, por assim dizer, não lhe parece comprometida
no primeiro caso, mas afigura-se-lhe que o está no segundo. Em compensação,
sente-se infinitamente mais surpreendido, mais fascinado pelo que se passa
naquele do que pelo que acontece neste. E mais orgulhoso, mais livre, o que não
deixa de ser singular. Assim acontece com essas sensações erectivas de que já falei,
cujo quinhão de incomunicabilidade, também ele, é uma fonte de prazeres
inigualáveis». In André Breton, Nadja, Editions Gallimard, 1964, Editorial Estampa,
tradução de Ernesto Sampaio, Lisboa, 1971.
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