terça-feira, 7 de janeiro de 2014

Notas para a Compreensão do Surrealismo em Portugal. António Cândido Franco. «O Sonho e o amor são tão reais que, às vezes, nos parecem tangíveis e palpáveis; podem ver-se! São tão sensíveis e tão verdadeiras como a realidade material»

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Experiências de Duplo e de Além Mundo em Pascoaes
«(…) Isto traz à colação, quer dizer, cola, o que atrás se disse sobre o papel da imaginação em Sohravardi. A imaginação tem natureza análoga a partes próximas do extra-mundo; por esse motivo pela imaginação a alma encarnada pode regressar ao lugar de origem. O sonho é pois parcela importante da imaginação e não apenas pelo tempo que ocupa na vida de cada um mas pela natureza contínua e real das imagens em que o sonhador mergulha. Não admita pois que seja a sonhar que o sujeito do poema de 1907 procure o veio de luz do extra-mundo. Recordo que a propósito de Sohravardi alertei para a necessidade de valorizar a imaginação. Sem isso o contacto com o além mundo perde-se ou quebra-se. Isto quer dizer que a alma necessita de tornar cada vez mais real, cada vez mais presente, cada vez mais sentido o mundo das imagens que lhe é aberto pela imaginação. O que se vê em imaginação não pode ser degradado pelo intelecto, ou desvalorizado por ele, como hoje acontece. A civilização da imagem é um dolo descarado, já que ninguém acredita hoje na imagem, nem os que a fazem nem os que a vêem, nem os que a vendem nem os que a compram. A imagem está hoje ao nível duma simples brincadeira inconsequente ou duma triste imbecilidade. É a Disneylândia do espírito, sem espessura de realidade, a não ser a facturação da indústria cultural. Mesmo uma criança, para quem a imaginação parece ser a única força actuante, porventura porque a alma acabou de encarnar no vaso, fica apática ante a cinemática de Hollywood; nem uma beliscadura, nem um grito, apenas a ruminação suculenta, o estalar na boca da pipoca com a calda de açúcar refinado.
Quão longe vão os tempos, sem cinema, sem animação luminosa de bonecos, sem electricidade, em que as meras histórias da carochinha, contadas boca a boca, entre analfabetos, ou transpostas por actores anónimos, providos de máscaras para um simples tablado de madeira carunchosa, podiam produzir no ouvinte ou no espectador, fosse pequeno ou grande, homem ou mulher, um suor lívido de terror, um grito de pavor. Nos antípodas da desvalorização da imagem está a experiência do autor que escreveu As Sombras. Leia-se a realidade que ele empresta ao sonho, fruto do muito convívio com ele:

O Sonho e o amor
são tão reais que, às vezes, nos parecem
tangíveis e palpáveis; podem ver-se!
(em A Sombra da Vida, décima estrofe)

As imagens no caso dele tocam-se; são tão sensíveis e tão verdadeiras como a realidade material. Não são simples passatempo, para entreter tempos mortos, que só por ironia se chamam também livres, como sucede na Disneylândia moderna, mas um mundo real, vivo e palpável». In António Cândido Franco, Notas para a Compreensão do Surrealismo em Portugal, Lisboa, Peniche, Évora, Editora Licorne, 2012, ISBN 978-972-8661-90-8.

Cortesia de Licorne/JDACT