Prefácio
«Se saudades me enlevam
na velhice?!…, perguntas-me. Afora o aconchego rural dos meus pais, só os
tempos distantes de Roma. Ó Roma eterna dos mártires e dos santos, paraíso
perdido dos meus sonhos de criança!… Vago e etéreo ainda me revejo, tantas
vezes, ora, pasta sob o braço, no átrio da Universidade; ora peregrino, na
Praça de S. Pedro; ora contemplativo e extático no interior da Capela Sixtina;
ora, no Coliseu, atento ao gesto último das Vestais, sobre o destino dos
gladiadores vergados ao peso da derrota; ora devoto e encorajado nas sinuosas
galerias das catacumbas dos teus mártires, ó Roma eterna…
Roma me gerou! E um
cordão umbilical, que se me não cortaria, me prende, a cada instante, ao útero
da loba capitolina, como papagaio de papel que a criança de dedos frágeis vai
dominando. Um hiato que não dá para entender. Salto no escuro. De vê-la, nem
por um canudo! Falta-lhe o mínimo de competência onde lhe sobeja o frenesi da
ambição. Pobre Ícaro que do mais alto da subida no fundo do Oceano se
houve de imergir!… Quanto a mim, sentir-me-ia a fazer a travessia do deserto.
Nem o abraço de um junípero que do sol me defendesse. Na aspereza da viagem,
prostrou-me o peso do cansaço, onde só uma coisa pedi aos céus. A súplica que
lhe teria feito Elias: a morte.
Só a morte, nada mais. E repetia-se, vezes sem conta. Sim, aparecerá, de quando
em vez, o Anjo de Deus, com uma bilha de água e um pão de sob a cinza. Mas de
dureza, pareceram-me anos e anos de viagem. Jerusalém, Jerusalém, que matas os
profetas e apedrejas os que te são enviados. Quantas vezes eu quis reunir os
teus filhos como a galinha os pintainhos… E tu não quiseste. Fique deserta a
tua casa… Quando acordo do pesadelo, vejo-me na Lusa Atenas. A
Universidade, velhinha de séculos; o saber dos catedráticos, salpicado de um
certo rigor que apreciei; a alegria esfusiante dos seus alunos, tão contagiante
como o dedo materno apontado ao beiço da criança, que a desperta num leve
sorriso; a camaradagem dos meus colegas, sempre disponíveis na ajuda a um pobre
estudante trabalhador; a Sé Velha, onde, acarinhado pelo monsenhor João
Evangelista, pernoitei; o fado da despedida que, desde há muito, e pela
primeira vez, depois da morte dos meus pais, me fez chorar de saudade; o Quebra-costas
e quantas correrias e saltos de agilidade, como cabrito montês em fuga desarvorada
pela serra; Santa Cruz e sua comunidade que o Mata-Frades, apesar de perto,
nunca soube compreender; a Rainha Santa e o regaço das suas rosas, o milagre permanente
de um odor que me refresca a alma e o coração. Coimbra, tens sempre encanto. Mas nunca tão
surpreendente como na hora mesma da despedida…
Por fim, S. Tiago de
Compostela. Homenagem ao meu pároco:
o acolhimento, no seu trono da Catedral, com lábios de sorriso complacente, que eu vi, com os meus
olhos que a terra há-de comer. O círculo da amizade de colegas e
professores na Universidade redimiram-me do cansaço. Restauraram-se-me as
forças, sentira-me novo, na recuperação maior de uma juventude que julgara para
sempre perdida. Faz bem respirar estas auras primaveris! Casa grande é aquela
onde cabem muitos amigos… O S. Tiago de Compostela! Ó ruas estreitas de
peregrinos apinhados! Ó sagrado turíbulo que, mais que os corpos, perfumas as
almas e os corações! A todos os meus professores e amigos, tantos, que fazem
grande a sua casa, um adeus de saudade num peregrino que não perde a
esperança de regresso. Pois, à cidade do Apóstolo, até depois da morte,
possível se faz a retoma de uma visitação! Na hora da partida, pois, um muito
obrigado: aos meus professores e aos meus colegas. Dos primeiros, que todos
mereceram a minha estima e consideração, é compreensível se destaque quem, pela
primeira vez, me acolheu, Lopez Alsina, e quem me orientou, Maria Luz Ríos
Rodríguez. Aquele, me ciceroniou, nos primeiros passos e me confortou com a sua
amizade; a segunda, nos últimos, quando dedicadamente e por dois anos a fio me
ajudou na elaboração da tese e que, com muita exigência, me postularia quanto
dar eu pude. Fique sob registo o testemunho da minha dedicação que bem lhe
cabe. Se não fosse o seu ânimo, com certeza que só botaria figura de uma
Penélope unifacial: dia e noite a fazer e a desfazer uma teia que nunca
acabasse… Ao fim e ao cabo, a teia ficou terminada. Trabalho conclusivo de uns
trinta anos de tão aturada quam paciente investigação. E à Universidade de S.
Tiago as lágrimas saudosas que me hão-de irrigar os passos breves da vida que
me restará». In Francisco
Carvalho Correia, O Mosteiro
de Santo Tirso, de 978 a 1588, A silhueta de uma entidade projectada no chão de
uma história milenária, Tese de doutoramento, Facultade de Xeografía e História, Universidade
de Santiago de Compostela, Estudo, Santiago de Compostela, ISBN 978-849-887-038-1.
Cortesia da USdeCompostela/JDACT