Camões e a Língua Portuguesa
«(…) Na farta messe das Rimas, colho como que ao acaso, duas
estrofes da canção A Instabilidade da Fortuna, para servirem de ilustração a essa
capacidade:
De vontades alheias, que roubava,
e que enganosamente recolhia
em meu fingido peito, me mantinha.
De maneira o engano lhe fingia,
que despois que a meu mando as
sojugava,
com amor as matava, que eu não
tinha.
Porém, logo o castigo que
convinha
o vingativo Amor me fez sentir,
fazendo-me subir
ao monte da aspereza que em vós
vejo,
co pesado penedo do desejo,
que do cume do bem me vai cair;
torno a subi-lo ao desejado assento,
torna a cair-me; em balde, enfim,
pelejo.
Não te espantes, Sísifo, deste alento,
que às costas o subi do sofrimento.
Destarte o sumo bem se me oferece
ao faminto desejo, porque sinta
a perda de perdê-lo mais penosa.
Como o avaro a quem o sonho pinta
achar tesouro grande, onde
enriquece
e farta sua sede cobiçosa,
e, acordando, com fúria
pressurosa
vai cavar o lugar onde sonhava,
mas tudo o que buscava
lhe converte em carvão a desventura;
ali sua cobiça mais se apura,
por lhe faltar aquilo que esperava:
destarte Amor me fez perder o
siso.
Porque aqueles que estão na noite
escura,
nunca sentirão tanto o triste
abiso,
se ignorarem o bem do Paraíso.
É por demais evidente que um conhecimento tão vasto e profundo da
língua materna só pode compreender-se quando construído sobre uma sólida
preparação cultural. Assiste-se, nos nossos dias, à ressurreição de uma afanosa
preocupação em proletarizar a
figura de Camões. E nenhum mal daí viria
ao mundo nem ao Poeta, se tal interpretação fosse rigorosa e não falseasse (?),
justamente pela sua falta de rigor, a objectiva visão crítica da sua obra. Por
esse caminho, (para mim, muito justo, jdact)
aberto não há muitos anos por Aquilino Ribeiro, enveredou agora, com denodada
mas leviana afoiteza, José Hermano Saraiva, (A Vida Ignorada de Camões,
1978, que me agradou…jdact) com uma
romanesca biografia, na qual o soldado de Ceuta e da Índia surge culturalmente
metamorfoseado num laborioso autodidacta que, por não ter podido frequentar
Humanidades (?), se limitava a manusear um ou outro livro nos lazeres deixados
pelo serviço prestado a soldo em casa dos condes de Linhares, e, mesmo assim,
apenas quando a senhora condessa, nas ausências do marido, o não chamava ao
feliz usufruto da sua intimidade, para exercer funções mais condizentes com a
sedutora fogosidade juvenil dos seus 16 ou 17 anos!... O resto, em matéria de
formação cultural, viria mais tarde, ao sabor de uma acidentada experiência, em
nada compatível com o que se ensinava nas escolas e muito menos na Universidade
(?)».In
Aníbal Pinto Castro, Camões e a Língua Portuguesa, Quatro Orações Camonianas,
Academia Portuguesa da História, Lisboa, 1980.
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