Sátiras contra os Favoritos e Magnates
«(…) Longo e de grande
significado social é este género de cantigas contra os homens do poder e do
dinheiro, luta de raízes bem medievais, a partir da pregação nos púlpitos. E
o estendal alargava-se. Certo rico-homem não pagava os serviços duma pessoa
de família. Outro contrariava o casamento da filha, D. Urraca Abril. Outro
ainda não conseguiu ter filhos. Seria melhor casar com uma tendeira de nome
Coelha, para ter um filho cada mês. E não falamos dos comendadores. A um
deles acusavam-no de ter feito perder a terra a um escudeiro. Outro andava
metido com a mulher confiada à sua protecção. Seria falsificar a história
generalizar tais factos. As sátiras, as caricaturas e os
panfletos ajudam a fazer a história. Mas não bastam, só por si. Concluímos, no entanto,
haver naqueles tempos uma grande liberdade verbal e que os trovadores gozavam,
em certa maneira, dos privilégios dos bobos
da corte. Talvez os ameaçassem com um chicote, mas eles iam falando. Nestas
cantigas contra os grandes, uma das mais bonitas e ágeis é a que Fernan
Soárez Quinhones compôs contra o fidalgo Lopo Anaia, femeeiro e ladravaz. Que o rei o
conserve junto de si, em Sevilha, e não se vá embora. Porquê? Porque,
Se el algur acha
freiras,
Ou casadas ou solteiras,
filha-xas pelas
carreiras.
E se gritam, ficam com
nódoas negras na cara. Fique em Sevilha, porque, onde passa, toma tudo para si.
E o mesmo fazia o pai dele!
Sátiras a Trovadores e Jograis
Os poetas dos
cancioneiros desavinham-se entre si, em pequenas escaramuças verbais, donde a
sinceridade às vezes batia as asas. Transformavam-se, então, em mero ludismo,
aliás útil para os divertir a si e ao público. Havia ataques de costumes menos
limpos, debatiam-se questões de estética, verificavam-se choques de ordem social
e diziam-se graças. E já não falamos de questões meramente pessoais. Comecemos
por simples graças e disputas para divertir. A tenção entre Afonso Sánchez e
Vasco Resende é um tanto sibilina. O tema é este: A senhora cantada pelo
segundo poeta morreu de facto ou isto
não passou de simples metáfora? Porque fazia ele versos de amor a quem já morrera? Afonso Gómez,
jogral galego, fala claro e diz a Martin Moxa: Tão velho sois que, decerto,
comestes alguna erva
que vos faz viver
tan gran tempo, que
podedes saber
mui ben quando naceu
Adan e Eva!
Os vossos filhos
barbados vêm de tempos antigos. Ora dizei-me, de que idade éreis vós, quando Almançor andou por aí a fazer estragos? Assim Deus me
perdoe, quando nascestes vós?
Antes do tempo em que encarnou Deus en
Santa Maria?
Quanto a Pero Ponte, Soeiro Eanes pode-se gabar, não das cantigas que
faz mas, sim, das boas cantigas que lhe fazem. Diz ele que não entende de
trovas. Mas escreveu contra ele cantares de escárnio e ele entendeu tudo. Atacavam-se
entre si, por vezes em razão do seu ofício, em geral a brincar. Jogral era
menos do que trovador. Joan Garcia Guilhade dirige-se ao jogral Lourenço e
repreende-o: Gostas muito de tocar cítola.
Agora pretendes cantar e julgas que já és trovador. Não sei qual d’estes mesteres fazes pior! O jogral
responde que o parceiro quer desfazer nele. Diga o que disser, falta-lhe
competência para julgar. - Não te zangues! acode Joan Garcia, nem digas
que não percebo do ofício. Perdes tempo! Lourenço replica habilmente que emende
antes as trovas dele, pois bem precisam. Por sua vez, Joan Garcia Guilhade
finge zangar-se, ameaça partir-lhe o citolão na cabeça, mas o jogral
fica na sua». In Mário Martins, A Sátira na Literatura medieval Portuguesa (séculos
XIII e XIV), Biblioteca Breve, Série Literatura, volume 8, Instituto de Cultura
e Língua Portuguesa, Centro Virtual Camões, 1986.
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Camões/JDACT