A Última Página
«(…) Nunca falava com ninguém sobre as minhas leituras; a necessidade
de partilhar veio mais tarde. Na altura, eu era soberbamente egoísta e identificava-me
completamente com os versos de Stevenson:
Este era o mundo e eu era rei;
para mim vinham as abelhas a
zunir,
para mim voavam as andorinhas.
Cada livro era um mundo em si e nele eu procurava, refúgio. Embora me soubesse
incapaz de inventar histórias como as que os meus autores preferidos escreviam,
sentia que as minhas opiniões muitas vezes coincidiam com as deles e (usando
a frase de Montaigne) comecei a
andar muito atrás deles, murmurando: Apoiado, apoiado! Mais tarde,
consegui dissociar-me da ficção contida nos livros; mas na infância e em grande
parte da adolescência, o que o livro me dizia, por mais fantástico que fosse,
era verdade na altura em que o lia e tão tangível como a matéria de que o
próprio livro era feito. Walter Benjamin descreve uma experiência semelhante: O que os primeiros livros foram para mim -
para recordá-lo teria primeiro de esquecer todo o restante conhecimento de
livros. E certo que tudo o que sei deles hoje reside na presteza com que então
me abri aos livros; porém, enquanto agora, conteúdo, tema e assunto são alheios
ao livro, antes encontravam-se única e inteiramente dentro dele, não sendo mais
externos ou autónomos do que são hoje em dia o número das suas páginas ou o
papel. O mundo que se revelava no livro e o livro em si não eram nunca
separáveis. Assim, em cada livro, também o seu conteúdo, o seu mundo, estavam
palpavelmente lá, à mão. Mas, da mesma forma, este conteúdo e este mundo
transfiguravam cada parte do livro. Ardiam dentro dele, resplandeciam dele;
localizados não apenas na capa ou nas ilustrações, estavam encerrados nos
títulos de capítulos e capitulares, parágrafos e colunas. Não se liam livros de
ponta a ponta; vivia-se, residia-se entre as suas linhas e, ao voltar a abri-los
após um intervalo, era-se apanhado de surpresa no lugar onde se tinha
interrompido a leitura.
Mais tarde, adolescente na biblioteca pouco usada do meu pai em Buenos
Aires (ele tinha mandado a sua secretária encher a biblioteca e ela comprara
livros a metro e mandara-os encadernar à medida das prateleiras, de forma que
os títulos no topo das páginas e, por vezes, até as primeiras linhas estavam
cortados), fiz uma outra descoberta. Tinha começado a procurar na
gigantesca enciclopédia espanhola Espasa-Calpe as entradas que eu
julgava relacionadas com o sexo de uma forma ou de outra: Masturbação, Pénis, Vagina, Sífilis, Prostituição.
Estava sempre sozinho na biblioteca, já que o meu pai apenas a utilizava nas
raras ocasiões em que tinha um encontro marcado com alguém em casa e não no
escritório. Eu teria doze, treze anos; estava todo enroscado numa das enormes poltronas,
absorvido na leitura dos efeitos devastadores da gonorreia, quando o meu pai
entrou e se instalou à secretária. Por momentos, fiquei aterrorizado com a
ideia de que ele iria reparar no que eu estava a ler, mas apercebi-me então de
que ninguém, nem sequer o meu pai, sentado a alguns passos de mim, podia
penetrar no meu espaço de leitura, decifrar o que me estava a ser dito
licenciosamente pelo livro que eu segurava nas mãos, e que nada, a não ser a
minha própria vontade, poderia permitir a alguém sabê-lo. O pequeno milagre
permaneceu silenciado, conhecido apenas por mim. Terminei o artigo sobre a gonorreia
mais exultante do que chocado. Mais tarde ainda, na mesma biblioteca, para
completar a minha educação sexual, li O Conformista, de Alberto Moravia,
O
Impuro, de Guy Des Cars, Peyton Place, de Grace Metalious,
Main
Street, de Sinclair Lewis, e Lolita, de Vladimir
Nabokov.
Havia privacidade não apenas na leitura, mas também na decisão sobre o
que ler, na escolha dos livros nas livrarias há muito desaparecidas de Telavive,
de Chipre, de Garmisch-Partenkirchen, de Paris, de Buenos Aires. Muitas vezes
escolhi livros pela capa. Houve momentos que recordo ainda agora: por exemplo,
lembro-me de ver a sobrecapa de brilho mate dos Rainbow Classics (publicados
pela World Publishing Company of Cleveland, de Ohio) e ficar encantado com as
encadernações estampadas por baixo, saindo da livraria com Hans Brinker ou The Silver Skates (de que nunca gostei e que
não cheguei a acabar), Mulherzinhas e
Huckleberry Finn. Todos estes livros tinham introduções por May Lamberton
Becker, intituladas … como surgiu este
Livro, e o seu tom bisbilhoteiro ainda continua a parecer-me uma das
formas mais excitantes de falar sobre livros. Assim, numa fria manhã de Setembro de 1880, com uma chuva escocesa a
martelar nas janelas, Stevenson aproximou-se da lareira e começou a escrever,
lia-se na introdução da Sra. Becker à Ilha
do Tesouro. Aquela chuva e aquela lareira acompanharam-me durante todo
o livro.
Recordo, numa livraria em Chipre, onde o navio em que viajávamos tinha
atracado por alguns dias, uma montra cheia de histórias de Noddy, com as suas capas
de cores berrantes, e o prazer de imaginar que ia construir a casa do Noddy com
ele, usando uma caixa de blocos de construção de brincar representada na capa.
(Mais tarde, sem vergonha nenhuma, deleitei-me com a série da The
Wishing Chair, de Enid Blyton, que eu não sabia ter sido
considerada sexista e snob
pelos bibliotecários ingleses.) Em Buenos Aires descobri a série brochada do Robin
dos Bosques, com o retrato de cada herói delineado a negro num fundo
amarelo, e li as aventuras de piratas de Emilio Salgari, O
Tigre da Malásia, os romances de Júlio Verne e The
Mystery of Edwin Drood, de Dickens. Não me lembro de alguma vez ler os
comentários às obras na contracapa para descobrir do que tratavam os livros;
não sei se os livros da minha infância os tinham». In Alberto Manguel, Uma História
da Leitura, Editorial Presença, Lisboa, 1998, ISBN 972-23-2339-3.
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