«O título desta palestra A Crítica Inintencional em Júlio Dinis
é um chamariz que se destina a provocar a atenção para uma dada ordem de
problemas, mas que não deve ser tomado demasiadamente à letra. E isto por duas
razões importantes: uma razão genérica respeitante a assuntos de psicologia da
expressão, nomeadamente de expressão literária, e uma razão específica que diz
respeito a um dos traços mais inovadores de Júlio Dinis como romancista. A razão genérica para encarar com
reserva esta designação de crítica inintencional prende-se com
o facto de que toda a vida psíquica, social e literária se tece de intenções
que se cruzam, chocam ou conexionam entre si e que, dinamicamente, se
hierarquizam em cada momento, numa ou em várias gamas de intenções mais ou menos
principais ou secundárias, e mais ou menos manifestas ou inaparentes. Como
evidenciou a filosofia fenomenologista, com precursores escolásticos
medievais, mas retomada e desenvolvida por Franz Brentano, Edmundo Husserl
e inspiradora de aspectos do existencialismo e da corrente hermenêutica de Gadamer,
qualquer ideia, qualquer desejo,
qualquer memória, qualquer história ou mito, e qualquer crítica também, visam
sempre um objecto intencional que se constitui a partir de outros objectos
previamente aceites ou concebidos. Uma crítica pretende proceder à
revisão de qualquer coisa, obedece a uma intenção que se apoia em dado grau e
forma de consciência, tem um objectivo que, mesmo visto de fora desse grau e forma
de consciência, se patenteia por uma certa regularidade de comportamento
prático ou verbal. Portanto, rigorosamente, esta palestra não se destina
a desvendar quaisquer intenções absolutamente inconscientes na ficção de Júlio Dinis. Uma obra de literatura, de
arte, e mesmo qualquer obra humana em geral, resulta da síntese possível de
muitos dados e de muitas intenções que brigaram entre si até atingirem um certo
equilíbrio dinâmico e complexo, e a briga de intenções prossegue a cada leitura
ou uso que se faz dessa obra, e em cada obra que é por ela influída. Cada
leitor é responsável pelas sínteses que faz a propósito de um romance de Júlio Dinis, sínteses sempre várias e
desgarradas, se não coludentes entre si, e que, dentro de outros pontos de
vista, continuam aquele esforço que o autor fez por chegar à sua síntese, que
nunca nos é de todo transparente, porque ninguém, nem mesmo o próprio autor ao
acabar de escrever esse romance, poderia reconstituir todo o complicado e cambiante
processo dessa escrita.
Mas, e é esta a razão específica para aqui encarar com reservas a noção
de
crítica inintencional, acontece que estas mesmas reflexões que acabamos
de exprimir (ou outras análogas) estão bem implícitas a vários textos do
próprio Júlio Dinis, nomeadamente no
romance Uma Família Inglesa, onde o ficcionista insiste nos diversos
graus e formas de subconsciência contraditória do comportamento mais
aparentemente consciente dos seus heróis, a tal ponto que o Nobel Egas Moniz
apresenta Júlio Dinis como um
precursor das teorias da dinâmica do consciente/inconsciente da psicanálise.
E provável que todos os leitores atentos de Uma Família Inglesa se
lembrem da célebre cena em que Carlos Whitestone desenha distraidamente, num
papel, um lampião da rua e uma máscara que, de modo despercebido, presenciara
no momento da despedida de Cecília à saída do teatro, entre outros esboços
de desenhos ou de pensamentos subconscientemente verbalizados, como as
designações de Papa e de Calvino, a assinalar a
preocupação com a diferença religiosa que o separa da amada. Noutra passagem, o
romancista explica certas distracções pelo facto de que, conforme diz, no
homem mais grave e sisudo, há sempre escondida a criança de outros tempos,
e acrescenta: Os jogos foram também
inventados por este motivo. Fingiu-se acreditar que era uma coisa grave o whist,
o voltarete, o boston, etc., etc., para qualquer pessoa poder, em
público, entregar-se a eles, sem ofensa da sisudez convencional: porque, se se
não fizessem estas concessões à criança humana que às vezes tem impertinências,
corria-se o risco de mais escandalosas rebeliões por parte dela.
Esta passagem é importante porque lembra que em actividades tão aparentemente
gratuitas como as actividades lúdicas existe um certo grau de intencionalidade.
Mas, evidentemente, não podemos supor que Júlio
Dinis elaborasse um conceito tecnicamente psicanalítico de inconsciente,
como o de Freud ou o de Jung. Assim, os diversos sonhos a que nos
faz assistir reportam-se sempre a acontecimentos ou objectos relativamente
próximos das preocupações correntes das personagens. A psicologia júlio-dionisíaca não concebe que nos
comportamentos e nas representações de uma pessoa exista um salto fundo, e só
muito genericamente concebível, entre o grau de consciência quotidiana, ou
racional, e umas forças estruturantes inapreensíveis e de todo inconscientes». In Óscar
Lopes, A Crítica Inintencional em Júlio Dinis, Cifras do Tempo, Palestra realizada
em Novembro de 1989, Editorial Caminho, Lisboa, 1990, ISBN 972-21-0535-3.
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