As mãos e o espírito
«A história do homem na terra pode dizer-se que principia com um
diálogo entre a mão e o cérebro. O homem tem de comum com os antropóides
superiores duas coisas importantes: a posição erecta e a capacidade de opor o
dedo polegar aos outros dedos. Mas foi só com o homem que se produziram
as consequências mais notáveis destes dois factores. A posição erecta, libertando da marcha os braços, perrnitiu
que as
mãos humanas se diferenciassem consideravelmente dos pés, tanto na sua
anatomia como nas suas funções; por outro lado, a posição erecta permitiu que a
massa encefálica se desenvolvesse em peso, equilibrando-se verticalmente ao
alto da coluna vertebral, em vez de pender desequilibradamente numa extremidade
horizontal da espinal-medula. Deste modo, as mãos puderam aperfeiçoar esse maravilhoso
sistema complexo de manobra constituído pelas alavancas variadíssimas que
são os ossos e os músculos dos dedos, e servido ainda pelos cinco ossos do
carpo, os oito do metacarpo, os dois do antebraço, e o do braço. A mão é já'um
esboço de todos os instrumentos imagináveis: o punho cerado faz de martelo, as unhas são como brocas ou puas,
ganchos ou pregos, ou garfos, etc.;
a palma da mão é o esboço de uma colher, de uma concha, de uma pá, de um copo,
de um balde, etc.; entre os
dedos dobrados pode correr uma corda como numa roldana; os dedos e o pulso podem ser accionados
rotativamente a fazer de bobina, etc. Se continuássemos a examinar,
encontraríamos ainda na mão funções comparáveis às de chaves, rolhas, torneiras,
amortecedores de choque, molas, etc. Estas funções complicadas, que
fazem da mão o primeiro e o mais
importante de todos os instrumentos, e até o instrumento humano por excelêncía,
dependem de sistemas especiais de controle em regiões determinadas do cérebro.
Por outro lado, o desenvolvimento das funções de relacionação no
cérebro pode fazer-se porque o complicado poder de manobra da mão humana
permitiu o aligeiramento da pesada mandíbula e da tremenda dentição que o homem
primitivo herdara dos seus antepassados animalescos. Como a mandíbula passou a
ser vantajosamente substituída pelas mãos em muitas funções, o seu peso e
volume puderam diminuir, e diminuiu a musculatura que até então comprimia as
paredes do crânio, impedindo o desenvolvimento do cérebro. O atrofiamento da
mandíbula e da dentição acarretou, por isso, o encorpamento do lóbulo frontal
do cérebro que é, digamos simplificadamente, a sede do pensamento superior e
da linguagem. Como se vê, a mão
e o cérebro, a acção e o pensamento, a prática e a teoria estão
indissoluvelmente ligados desde que o homem é homem. Mas a mão não se limita a executar ordens; é também órgão fundamental
de investigações. Ora vejamos. O espírito humano está continuamente a
responder a perguntas que selecciona no mundo exterior através do complicado
sistema telegráfico montado no seu corpo a que chamamos os sentidos, os cinco sentidos, como geralmente
se diz, os onze sentidos, como
se estuda nos manuais de Psicologia, ou, mais rigorosamente ainda, a inumerável
quantidade de sentidos constituídos por inúmeras terminações nervosas diferentes,
que transmitem impressões de frio,
calor, peso, distância, as cores e intensidades da luz, as múltiplas qualidades
dos sons, dos sabores, dos contactos, das pressões, etc., etc.
Algumas destas mensagens telegráficas captadas pelos sentidos vêm de
emissores relativamente longínquos, como as que são transmitidas através da vista, do ouvido, ou do olfacto;
outras vêm do interior do corpo, como
a sede, o enjoo, o sono; outras necessitam de um contacto da pele, e lá
estão as mãos, os dedos, como um aparelho de sondagem rigorosa,
projectando-se a meio metro de distância do corpo em qualquer direcção,
adaptando-se a qualquer superfície ou volume. Os dedos são os olhos de ver ao perto, e tão úteis
aos outros olhos, propriamente ditos, de ver ao longe, que nos é impossível compreender
uma cena distante sem adivinharrnos se se trata de coisas lisas ou rugosas,
delgadas ou espessas, frias ou quentes; ao passo que um cego, e até um
cego e surdo de nascença, pode compreender o mundo através, principalmente, das
mãos. Mas aonde pretendo chegar
com isto? Pretendo concretizar a tese desta palestra. Imaginemos que
todo o ser humano se reduz a duas coisas: a
mão que actua, que executa movimentos e também que tateia, sonda o mundo
exterior e transmite sinais; e o
espírito, relacionado sobretudo com o sistema nervoso central,
especialmente com o cérebro, que coordena esses sinais e que dirige os
movimentos da mão. Há entre os dois um
diálogo permanente. Tudo o que a mão diz ao cérebro é, ao mesmo tempo,
pergunta e resposta. E o cérebro também nunca responde definitivamente: em cada
resposta que dá vai sempre também uma pergunta, para que a mão indague melhor». In
Óscar Lopes, As Mãos e o Espírito, Uma Arte de Música e Outros Ensaios, Oficina
Musical, Porto, 1986.
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