Maria Magdalena. A antiodisseia da discípula amada
«(…) Madalena era
discípula de Jesus e o seguia com seus bens, seu corpo e sua alma. Foi
testemunha dos dois piores momentos da vida dele: a Paixão e a Ressurreição.
Quando chama Jesus de Mestre, legitimamente se auto-intitula discípula. Quando
Jesus incumbe Madalena de anunciar a ressurreição, Ele confirma o Apostolado e
Discipulado dela. Foi Hipólito, bispo heresiólogo de Roma, quem outorgou
à Madalena, no século III, o título de Apostola
Apostolorum, facto este posteriormente olvidado pela Igreja. O
facto de Madalena ter sido incumbida directamente por Jesus de anunciar a sua
ressurreição a transforma, de certo modo, na fundadora do Cristianismo, como já
apontou Renan em Vida de Jesus.
Seria mais correcto dizer que, ao anunciar a ressurreição, Madalena lança a
pedra fundamental do Cristianismo. Jean-Yves Leloup (2004) elabora, no final
de seu Romance de Maria Madalena, uma mulher incomparável, 12 interessantes
teses sobre Madalena. Na sua sétima tese, considera Madalena como aquela
que acompanhara a agonia e a morte de Jesus, mas, principalmente, fora ela a parteira
do novo nascimento de Jesus, tornando-se, assim, uma segunda mãe para Ele. A
primeira, Maria, mãe dele, acompanhou o nascimento carnal; a segunda, Madalena,
o nascimento espiritual, a ressurreição dentre os mortos. Também podemos
estabelecer outra relação figurativa que já foi apontada na Introdução do
Sermão anónimo francês pertencente ao século XVII, encontrado por Rainer Maria
Rilke (2000) num antiquário parisiense, em 1911,
intitulado L’ amor de Madaleine: se por Eva, em um jardim
ocorreram a perdição e a morte, por Madalena, também em um jardim, ocorreram o
resgate e glorificação da mulher. A primeira mulher foi falha e não passava
de uma sombra da outra: Madalena. Se por uma mulher, Eva, entrou o pecado e coube a ela presenciar a queda do primeiro
Adão, à outra mulher, Madalena, foi
atribuído o privilégio de presenciar a morte e, principalmente, a ressurreição
do segundo Adão, Jesus, este sim incorruptível
e sem pecado. Essa mesma ideia já havia sido desenvolvida por Cirilo de
Alexandria, que, em 444, afirmava
que em Madalena todas as mulheres foram perdoadas da transgressão de Eva, porque
Madalena testemunhara, antes de todos, a ressurreição. Em 630, Modestus, patriarca de Jerusalém, levantou a hipótese
de que Madalena fora líder das discípulas de Jesus e que morrera martirizada.
Santo Agostinho também distingue Madalena como uma das mulheres mais importantes
dos Evangelhos.
Jacinto Freitas Faria (2004)
enumera, na sua obra O outro Pedro e a outra Madalena segundo os
Apócrifos, suas 13 teses
sobre Madalena dos Evangelhos
Canônicos:
- Apóstola de Jesus;
- Mulher possessa de sete demónios;
- Mulher que sustenta financeiramente a Jesus e seus discípulos;
- Mulher sem laços familiares;
- Testemunha da morte;
- Testemunha do sepultamento de Jesus;
- Discípula amada de Jesus;
- Testemunha da ressurreição e anunciadora deste facto aos demais discípulos;
- Madalena quis tocar o corpo de Jesus;
- Temeu que não acreditassem em sua mensagem;
- Foi a primeira pessoa que acreditou que Jesus havia ressuscitado;
- Mulher de oração;
- Madalena não era prostituta.
Todos os evangelistas
dão importância crucial à Madalena na vida do Homem de Nazaré, uma vez que ela
é citada 12 vezes a mais que Maria, mãe
de Jesus. Supomos que Madalena fosse tão conhecida naquela época, praticamente
uma celebridade, que era impossível não se fazer referência a ela, por isso há
uma quádrupla atestação dos evangelistas sobre a actuação dela. Mas as funções
de discípula e apóstola, funções primordiais de Madalena, foram ofuscadas pela
fusão e confusão em torno de sua tríplice face, criando-se uma espécie de
contínuo poético: a suposta pecadora que ungiu os pés de Jesus foi identificada
com a mulher quase apedrejada por adultério, com a mesma que esteve aos pés da
cruz e que preparou unguentos para a unção do corpo de Jesus no sepulcro. Tudo isso
passou a fazer parte do que denominamos tradição madalénica, confirmada
pela pintura e pelos filmes da vida de Cristo. Bernardino de Sena, num
sermão latino escrito e pregado na Idade Média, aponta os topos madalénicos da
designada Magna peccatrix: busca
de prazer, beijos/luxúria, penteado/vaidade, olhar lascivo, caminhar suspeito, tentação,
beleza do corpo, abundância de bens/riqueza e muita liberdade. As
pinturas da Idade Média e do Renascimento mantêm a tradição madalénica
ao retratá-la com longos cabelos, na maioria das vezes, loiros ou ruivos,
vaso de perfume e manto vermelho. Na Idade Média, Madalena torna-se, a
partir desses topos, padroeira dos perfumistas, dos cabeleireiros, dos
fabricadores de luvas e leques e das meretrizes arrependidas.
Cabe aqui relatarmos um
caso ocorrido dentro da Igreja Católica nos últimos 50 anos. Segundo a
reportagem da Folha de São Paulo publicada em 1996, cerca de 50 irlandesas, apodadas
de filhas de Maria Madalena, (ordem de freiras irlandesas que
tinha conventos em toda a Irlanda), passaram os últimos 40 anos de suas vidas lavando
seus pecados nas chamadas lavandarias de Madalena. Agora
correm o risco de viverem mendigando nas ruas de Dublin. Nas décadas de 1940 e 1950, milhares de adolescentes que não se comportavam dentro dos padrões
puritanos da sociedade foram condenadas a viverem isoladas em regime de
cativeiro dentro das lavandarias desses conventos, lavando roupa o dia inteiro
durante o ano todo para expiação dos seus pecados». In Salma Ferraz, organização, Maria Madalena das páginas da Bíblia para a
Ficção, Textos Críticos, Eduem,
UEM, Maringá, Brasil, 2011, ISBN 978-85-7628-334-8
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