Imagens do cosmos na poesia portuguesa. A Tabacaria, de Fernando Pessoa
«(…) Toda a acção decorre entre a janela e a cadeira, em que acaba
por fumar o seu cigarro. Tudo é dominado pela metafísica, uma consequência de estar mal disposto.
É, de facto, a teimosia de recusar todos os sonhos que surjam a um dado homem
só, numa rua real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa;
escrever versos de depreciação inclusivamente sobre o sentir-se génio como
qualquer fala-só, serei sempre o que só tinha qualidades, numa ostensiva
autonegação, defronte da Tabacaria, calcando aos pés a consciência de estar
existindo. E chega aos versos centrais do poema: Ele [o dono da Tabacaria]
morrerá, eu morrerei. / Ele deixará as tabuletas, e eu os versos também. /
Depois de certa altura morrerá a rua onde está a tabuleta, / e a língua em que foram
escritos os versos. / Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.
/ Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente / continuará
fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas [...] sempre
uma coisa defronte da outra [...].
É curioso que Pessoa aceita a multiplicidade dos
mundos como uma forma de exteriorizar o tédio de estar defronte, mesmo entre o fundo e a superfície. Sempre isto ou sempre outra coisa, ou nem
uma coisa nem a outra. Todo o poema corresponde à mesma neurastenia, com a
possível excepção de dois versos: Essência musical dos meus versos inúteis, /
quem me dera encontrar-te como coisa que eu fizesse. O mundo (qualquer mundo)
enfastia-o, só porque não foi ele, poeta, quem o fez, pelo que se limita a
expandir a todos os pretextos o seu mal-estar, não se sabe porquê.
A Morte, o espaço, a eternidade, de Jorge de Sena
A Morte, o Espaço, a
Eternidade é o último poema das Metamorfoses, de Jorge de Sena
(antes de Post-Metamorfoses e
dos Quatro sonetos a Afrodite
Anadiómena, que se seguem no mesmo livro). Foi inspirada pela morte da
mãe de José Blanc de Portugal, a quem se deve o luminoso pensamento
inicial: De morte natural nunca ninguém morreu, e pelo primeiro satélite
artificial da Teria, lançado em 4-11-1957 (Gagárine seria lançado em 4-5-1961).
A ideia básica é a de que o ser humano não nasceu para morrer. É natural
morrer-se, mas nós somos a anti-natureza (Antiphysis), sempre nos
sonhamos imortais, e a própria dor por outrem que morreu é um erro humano a
assinalar algo de nós que se perdeu em outrem, é a salvaguarda social da morte
individual, como há milhões de anos sabemos. Nascemos para emergir,
verbo importante (tal como, na escala animal, a fase dos anfíbios, os que
emergiram de um para outro meio). Que
prova a morte?
Só prova que se morre de universo pouco. Aceitar a morte é traição ao medo porque somos (medo, outra palavra-chave). Chegaremos
às nebulosas mais distantes, porque a morte
é deste mundo em que o pecado, a queda a falta originária, o mal / é aceitar,
seja o que for rendidos. E aqui há a transição que aproxima o poema de
uma ideia que o jacobino, Sampaio
(Bruno) trouxe da tradição esotérica. Deus, não pode fazer nada. De nós se acresce ele mesmo, que será / o
que espírito formos. Portanto, não nos aguarda, não; e a ressurreição / é a
morte desse Deus que nos espera / para espírito ser e a carne do Universo. Para
emergir nascemos. E o poema remata por um consciente paradoxo: E,
quando o infinito não mais fosse e o encontro houvesse de um limite dele, / a Vida
com seus punhos levá-la-á na frente, / para que em Espaço caiba a Eternidade.
Este poema em cuja motivação se cruzam o Sputnik, a primeira proeza
extraterrestre desde as viagens que principiaram a unificar intencionalmente a
ecúmena, e a morte de uma pessoa amiga, é bem um poema de Jorge de Sena,
deca e dodecassilábico branco, escrito currente calamo à medida dos grandes
impulsos, embora desde o começo com a negação da natureza: Somos / esse negar da espécie, esse negar / que nos liga ainda ao
Sol, à Terra e às águas. As repetições do emergir, e da dor,
ou pavor) comunicados pela morte. A morte que não é estritamente animal,
ou simplesmente biológica, é da Vida Humana que passa por todo o orgânico
e é o gozo e é dor e pele que palpita
/ ligeiramente fria sob ardentes dedos. É o pouco de universo a que se agarram,
/ para morrer, os que possuem tudo. Um poema de amor e de progresso,
sem limites espaciais. Protesto da Vida, enquanto o medo existir. É ainda possível desvendar contradições,
enovelamentos, antinomias. São nossas. Não são de Camões, nem de Soares de Passos, nem da peculiar e
complicada neurastenia de Pessoa. São nossas». In Óscar
Lopes, A Busca de Sentido, Questões de Literatura Portuguesa, Editorial
Caminho, Lisboa, 1994, ISBN 972-21-0986-3, Jornal de Letras, 17-8-1994.
Cortesia de Caminho/JDACT