«(…) Deste modo, as circunstâncias históricas a que Herculano reage, seja o absolutismo
miguelista, seja a Revolução de Setembro, seja o encaminhamento do
regime liberal no sentido de uma oligarquia bancária (ele diria agiota)
e latifundiária, congraçada com a Cúria Romana e assente numa hipertrófica centralização
burocrática de pseudo-representatividade parlamentar, essas circunstâncias
históricas sucessivas, quando projectadas pelo estilo mais romântico da polémica
herculaniana, aparecem superlativadas como num salmo ao Deus javético do
Juízo, ou Vingança Final, entoado no desterro da mudável Babel terrestre
contemporânea, onde são carpidas as saudades de uma Sião, que pode assumir as
feições da infância pessoal ou de uma idealizada liberdade portuguesa quatrocentista
sob o rei João I, ou do puro ideal liberal desse seu homólogo rei-soldado,
Pedro IV, ,mas cujo axioma fundamental é o da incomensurabilidade cristã, e
romântica, entre o exílio de qualquer vida real e a esperança de uma qualquer
Jerusalém Celeste. Poderíamos especular sobre as motivações pessoais deste cantor
da solidão nas ruínas ou nos ermos do sol-pôr ou da meia-noite, para quem
o oceano e o céu, abraçando-se no horizonte, são sobretudo a imagem
da eternidade e do infinito, deste extraordinário poeta, em verso e em
prosa, da tempestade como metáfora do espírito, sacudindo-se no manto dos elementos
da matéria. Aquilo que será mais difícil de pôr em dúvida é que o poeta, o
ficcionista e o polemista pretendem contagiar-nos o arrepio sagrado das grandes
abominações e punições religiosas, o pathos das aspirações inapaziguáveis,
e o bafo do sepulcro a nossos-pés.
As obsessões românticas da morte, do desterro, das crises passionais
extremas e irremíveis, das catástrofes sociais apocalípticas, dos aleijões, das
enfermidades e de decrepitude encanecida percorrem muitas páginas de Herculano, que hoje nos sensibilizariam
ou convenceriam melhor se lhes desse menor altissonância (como é o caso da
sua intercessão a favor dos velhos egressos dos conventos, ou das mirradas
freiras de Lorvão), e parece incontestável que estes seus ingredientes de
magnificação inadequada serviram de modelo ao chamado ultra-romantismo medievista,
cemiterial e melodramático de todos os géneros. Ele próprio, Herculano, acabou por reconhecer a inadequação
do seu peculiar hiperbolismo no ataque aos Setembristas
bem como as fraquezas dos seus romances. Todavia, há um recanto de romantismo
supervivente em cada um de nós que ainda vibra perante as equivalências klopstockianas,
schillerianas, chateaubriandescas ou burguerianas de Herculano, incluindo os monólogos do seu alter ego transposto à Carteia
e aos Montes Cantábricos da Invasão Sarracena. Por outro lado, e ainda
dentro deste nosso assunto do estilo polémico, Herculano dispõe de uma outra gama de recursos discursivos que o
tornam um dos nossos grandes modelos de exposição polémica e doutrinária,
um condigno contemporâneo da oratória de José Estêvão, um condigno e
reconhecível mestre directo de Antero, e indirecto de António Sérgio ou
Raul Proença.
Em peças como as do debate sobre a propriedade literária com Garrett (1851),
a Solemnia
Verba endereçada a Magessi Tavares (1850), a discussão do
casamento civil com o visconde de Seabra (1865) ou o duelo jornalístico de 1853, com Pedro Lopes Mendonça, sobre
as implicações da rede ferroviária ainda em projecto para o futuro (centralizado
ou descentralizado) do País e da Península (1853), na polémica com
Franciscco Cárdenas sobre a existência, ou não, do feudalismo nas monarquias
neogóticas (1875-1877), nestas peças, digo, não se sabe que mais admirar: se a extraordinária urbanidade, que de
modo tão visível se impõe a um temperamento confessamente fogoso e irascível,
se o belo desenvolvimento de uma estratégia de assalto oportuno a cada posição
adversária, utilizando, como em lances de judo, os próprios movimentos
lançados do antagonista para o levar ao tapete e à imobilidade, e impondo-se
como regras de evidência aquelas que a outra parte usaria se estivesse, ela
própria, tão senhora, como Herculano está, dos seus próprios pressupostos ou
razões». In Óscar Lopes, Álbum de Família, Ensaios sobre Autores Portugueses do
século XIX, Reflexões sobre Herculano como polemista, Editorial Caminho,
Colecção Universitária, Lisboa, 1984.
Cortesia de Caminho/JDACT