Oposições e Objecções
«(…) De resto, em
Portugal, os próceres da nova escola apresentaram-se desde o início mais como renovadores
do que como revolucionários: renovadores da linguagem literária,
ressuscitadores da tradição nacional, iniciadores da nova estética e novos
géneros e mais libertadores da tirania imitativa do clássico do que propriamente da literatura clássica. Castilho,
ao prefaciar em 1841 a sua tradução
de As Metamorfoses de Públio
Ovídio Nasão, opõe justificadas razões ao medievalismo romântico: Mas (objectarão alguns) não são estas antigualhas greco-romanas, as
que hoje valem e se procuram no mercado intelectual, mas sim as da idade-média;
é isto: primeiro, porque as da Idade Média, com estarem mais próximas,
estão por ora menos averiguadas, e ainda as não reduziram, como as romanas e
gregas notícias, a dissertações, tratados e lexicons amplíssimos; ainda
não tiveram seus Grevio, Gronovio, Heinsio, Petisco, Rosin, Winckelmann, etc.; segundo,
porque a Cavalaria, com sua profissão de fé para com Deus, lealdade para com os
homens, amor, galantaria, e protecção para com as mulheres, vem, muito mais do
que o Paganismo, com as opiniões e costumes do nosso tempo; e terceiro,
porque por esta mesma segunda razão, e por serem superstição e barbaria da Idade
Média muito mais fecundas em terror, de necessidade haviam de prevalecer, como prevaleceram,
para moda.
Não dirão que enfraqueço
ou dissimulo os argumentos contrários; mas
são eles por ventura invencíveis? Examinai-os de perto. O
primeiro terá grande força por parte dos autores, mas nenhuma por parte dos
leitores, que são infinitamente maior número. Para um escritor, que entre os do
seu país quer, pode, e deve primar, facilmente concordo em que o explorar minas
virgens lhe há-de ser muito mais agradável trabalho, do que lançar mão das
riquezas já por outros amontoadas. Mas desses verdadeiros criadores da história
íntima da sua Pátria, e lidos por todos, quantas
dúzias me apontareis? Teve a Inglaterra um Walter Scott; poderia
ter a França um Vítor Hugo; começou e há-de chegar a ter Portugal um Herculano.
Quanto ao restante dos escritores e escrevinhadores, e a todo o comum do
Público, especialmente entre nós, tão nosso é o que nos livros dos Gronorios
está averiguado, como o que anda nas crónicas fradescas e cartórios do Reino
jaz escondido. Tão nova lhes será, e por isso tão grotesca, a descrição da ceia
de Trimalcião miudada por Petrónio, como o de um jantar de homens
de armas à roda da caldeira e à sombra do Rico
Homem Egas Moniz. Tão insólita e divertida coisa a relação que Apuleio
lhes fará das posses e malefícios das feiticeiras da Tesalia, como a
lenda das diabruras do santo frei Gil.
O segundo argumento, que
versa sobre a maior analogia que dizem ter com este mundo da Liberdade o mundo feudal, por ser
cristão, cavaleiro e namorado, por negação se contraria; porque se bem
lançarmos as contas, achar-se-á que não temos nós, ainda hoje, menos daqueles remotíssimos
Pagãos, do que destes Cristãos afastados. Romana
é a raiz das nossas leis; romano
o princípio de bom número dos nossos costumes; romana e romaníssima uma
boa parte dos acidentais do nosso culto; romanas
muitas das nossas superstições; e
até romana a nossa língua, em palavras, em figuras e tropos, sem
alusões e reminiscências, sem rifões e anexins e até pela diuturnidade
do trato, com que ainda há dois dias, frequentávamos
romanos e romaníssimas ficaram as feições das nossas virtudes e o carácter
guerreiro e vagabundo da nossa glória. A citação foi longa, mas tão
ignorados estão hoje os escritos de Castilho que ela se justifica, porque ele
foi o mais esclarecido e o mais elegante dos opositores que o nosso primeiro
romantismo encontrou à sua estética. Castilho
considerou o maravilhoso romântico
como muito menos expressivo e muito menos belo que o maravilhoso pagão. Castilho
não acreditava no popularismo estético dos nossos românticos e com uma razão muito
sólida, uma vez que Portugal contava então mais de 90 % de analfabetos. Para o
tempo que ia noveleiro e dramático,
em que o sublime da arte consistia, segundo Castilho, em estender o ânimo dos leitores sobre uma
ideia, como sobre um potro de martírio, dar-lhe tratos e queimá-lo a fogo lento
consistindo a sua principal missão em entristecer,
aterrar e desanimar a espécie humana.
Quanto à moral, Castilho
considerava que, na literatura antiga, cada atentado contra ela só tinha o seu
próprio nome, ao passo que na novela e no drama românticos o adultério, o
roubo, o homicídio aparecem sedutoramente atractivos. Para ele era falsa toda a
arte literária que não tivesse por escopo a beleza e por fim a dignidade
humana. Não teve Castilho impugnação, nem, que fosse notório, houve romântico
que levantasse a luva. Os românticos portugueses só se bateram na guerra civil,
no campo das letras não lutaram e, em verdade, mesmo que o desejassem, não
tinham com quem». In Castelo Branco Chaves, O Romance Histórico no Romantismo Português,
Instituto de Cultura Português, Centro Virtual Camões, Instituto Camões,
oficinas Gráficas da Livraria Bertrand, 1980.
Cortesia do I.Camões/JDACT