NOTA: Texto na versão original.
A Infanta D. Maria
«(…) Pela minha parte, creio que o ponto de partida para o
endoutrinamento da Infanta e seu primeiro norte, francamente liberal, inculcou-lhe
um ideal philosophico superior, mas que posteriormente abalada pelos acontecimentos
particulares que aniquilaram as suas aspirações mundanas, e coincidiram com a
reacção jesuitica a sua mentalidade tomou evolução mais theologica. A materia
dos livros que lhe foram dedicados, nos primeiros decennios e nos ultimos,
confirmam que houve scissão. De 1520
a 1550 estava-se em pleno renascimento.
A cultura classica, o amor á antiguidade, que de modo muito imperfeito havia
penetrado na côrte de João II e Manoel I, expandia-se impetuosamente por todo o
reino. Quanto á vitalidade intellectual, ao fervor artistico, á energia
litteraria, nunca houve em Portugal periodo que se possa comparar aos decennios
em que recahe a mocidade da Infanta.
João III, convencido de assim cumprir uma missão civilisadora,
tratava muito a serio da reforma da educação nacional. Chamou humanistas
estrangeiros e humanistas indigenas, instruidos em Salamanca, Paris e Florença.
Uns foram para Coimbra, Evora, Braga; outros para o ensino no paço. Foram secretários
del Rei e mestres dos infantes seus irmãos, e de seus proprios filhos, vultos
como Aires Barbosa, André de Resende Nicolau Clenardo, João Vaseu, Pedro Nunes,
Lourenço de Caceres, Jorge Coelho, Diogo Sigeu, Ignacio Moraes, Pedro Sanches,
Jeronymo Cardoso, Pedro Margalho. Em casa dos duques de Bragança, barões de Alvito,
condes do Vimioso, de Linhares e outros magnates encontramos os mesmos, e para
ensino da lingua patria a João de Barros, Fernam Oliveira, Francisco Moraes, e
Luiz de Camões, se o seu ultimo biographo descobriu a verdade. Na capital,
installaram-se aulas de latim para os moços-fidalgos. E comquanto nem todos
aproveitassem e alguns maldizessem a sorte que os fizera nascer em
sino de latim (conforme com muita graça confessou um dos mais antigos
letrados palacianos), a medida do saber foi subindo consideravelmente entre
os aristocratas privilegiados, aos quaes o reformador da poesia havia dirigido pouco
antes uns conhecidos aphorismos,
Dizem dos nossos passados
que os mais não sabiam ler:
eram bons, eram ousados…
eu não louvo o não saber,
como alguns ás graças dados…
Quanto á educação feminina, reformistas eminentes como Luis Vives,
haviam-na classificado como indicio seguro da civilisação alcançada por um
povo. Persuadidos que só de mulheres solidamente instruidas nas artes liberaes,
iniciadas directamente no puro gosto da antiguidade, havia de nascer uma
geração de entes superoires, de caracter, energia e intelligencia privilegiada,
exigiam que as humanidades formassem parte integrante tambem da cultura do sexo
fragil.
A grande em tudo rainha Isabel a Catholica já havia aceite o
alvitre com enthusiasmo. Em idade madura venceu as difficuldades da lingua de
Lacio. Fez estudar as Infantas suas filhas. Instituiu na sua aula o posto de
mestra latina, a favor de D. Beatriz Galindo, sua preceptora. Em harmonia com o
aphorismo então lançado por um dos cortesãos: jugaba El-rey, eram todos
tahures; estudia la reina, somos ahora estudantes, a aristocracia do
sangue imitou-a. Quanto á aristocracia das letras, é evidente que, dando o
impulso, dera tambem o exemplo.
Em Portugal a evolução foi a mesma, posto que mais tardia, vagarosa
e incompleta. As duas filhas da rainha Catholica que occuparam o throno
português de 1495 a 1519 não eram de modo algum hospedas nas letras, como
não o haviam sido a esposa de João II nem a de Affonso V. Mas ainda assim, não
implantaram nos paços da Ribeira a moda erasmiana nem a sua
transformação italo-castelhana. A neta, isto é a mãe da Infanta e irman da
rainha D. Catharina, pertence o impulso. D. Leonor era boa latina como a avó e
a progenitora, porque mesmo a pobre D. Juana contestava de improviso em latim
aos discursos gratulatorios das cidades de Flandres. Logo no primeiro anno da
sua assistencia em Portugal, a esposa de Manoel
conseguiu que lhe representassem na côrte uma engraçada comedia latina,
escripta por um estudante em ferias, emquanto Salamanca ardia em febre». In
Carolina Michaelis de Vasconcelos, (1851-1925),
Infanta D. Maria de Portugal (1521-1577) e as suas Damas, edição fac-similada, Enclave
de Reabilitação Profissional da Biblioteca Nacional, Lisboa, 1994, ISBN
972-565-198-7.
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