sábado, 29 de março de 2014

A Infanta D. Maria de Portugal (1521-1577). As suas Damas. Carolina Michaëlis. «Fez estudar as Infantas suas filhas. Instituiu o posto de mestra latina, a favor de D. Beatriz Galindo. Em harmonia com o aphorismo então lançado por um dos cortesãos: “jugaba El-rey, eram todos tahures; estudia la reina, somos ahora estudantes”»

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NOTA: Texto na versão original.

A Infanta D. Maria
«(…) Pela minha parte, creio que o ponto de partida para o endoutrinamento da Infanta e seu primeiro norte, francamente liberal, inculcou-lhe um ideal philosophico superior, mas que posteriormente abalada pelos acontecimentos particulares que aniquilaram as suas aspirações mundanas, e coincidiram com a reacção jesuitica a sua mentalidade tomou evolução mais theologica. A materia dos livros que lhe foram dedicados, nos primeiros decennios e nos ultimos, confirmam que houve scissão. De 1520 a 1550 estava-se em pleno renascimento. A cultura classica, o amor á antiguidade, que de modo muito imperfeito havia penetrado na côrte de João II e Manoel I, expandia-se impetuosamente por todo o reino. Quanto á vitalidade intellectual, ao fervor artistico, á energia litteraria, nunca houve em Portugal periodo que se possa comparar aos decennios em que recahe a mocidade da Infanta.
João III, convencido de assim cumprir uma missão civilisadora, tratava muito a serio da reforma da educação nacional. Chamou humanistas estrangeiros e humanistas indigenas, instruidos em Salamanca, Paris e Florença. Uns foram para Coimbra, Evora, Braga; outros para o ensino no paço. Foram secretários del Rei e mestres dos infantes seus irmãos, e de seus proprios filhos, vultos como Aires Barbosa, André de Resende Nicolau Clenardo, João Vaseu, Pedro Nunes, Lourenço de Caceres, Jorge Coelho, Diogo Sigeu, Ignacio Moraes, Pedro Sanches, Jeronymo Cardoso, Pedro Margalho. Em casa dos duques de Bragança, barões de Alvito, condes do Vimioso, de Linhares e outros magnates encontramos os mesmos, e para ensino da lingua patria a João de Barros, Fernam Oliveira, Francisco Moraes, e Luiz de Camões, se o seu ultimo biographo descobriu a verdade. Na capital, installaram-se aulas de latim para os moços-fidalgos. E comquanto nem todos aproveitassem e alguns maldizessem a sorte que os fizera nascer em sino de latim (conforme com muita graça confessou um dos mais antigos letrados palacianos), a medida do saber foi subindo consideravelmente entre os aristocratas privilegiados, aos quaes o reformador da poesia havia dirigido pouco antes uns conhecidos aphorismos,

Dizem dos nossos passados
que os mais não sabiam ler:
eram bons, eram ousados…
eu não louvo o não saber,
como alguns ás graças dados…

Quanto á educação feminina, reformistas eminentes como Luis Vives, haviam-na classificado como indicio seguro da civilisação alcançada por um povo. Persuadidos que só de mulheres solidamente instruidas nas artes liberaes, iniciadas directamente no puro gosto da antiguidade, havia de nascer uma geração de entes superoires, de caracter, energia e intelligencia privilegiada, exigiam que as humanidades formassem parte integrante tambem da cultura do sexo fragil.
A grande em tudo rainha Isabel a Catholica já havia aceite o alvitre com enthusiasmo. Em idade madura venceu as difficuldades da lingua de Lacio. Fez estudar as Infantas suas filhas. Instituiu na sua aula o posto de mestra latina, a favor de D. Beatriz Galindo, sua preceptora. Em harmonia com o aphorismo então lançado por um dos cortesãos: jugaba El-rey, eram todos tahures; estudia la reina, somos ahora estudantes, a aristocracia do sangue imitou-a. Quanto á aristocracia das letras, é evidente que, dando o impulso, dera tambem o exemplo.
Em Portugal a evolução foi a mesma, posto que mais tardia, vagarosa e incompleta. As duas filhas da rainha Catholica que occuparam o throno português de 1495 a 1519 não eram de modo algum hospedas nas letras, como não o haviam sido a esposa de João II nem a de Affonso V. Mas ainda assim, não implantaram nos paços da Ribeira a moda erasmiana nem a sua transformação italo-castelhana. A neta, isto é a mãe da Infanta e irman da rainha D. Catharina, pertence o impulso. D. Leonor era boa latina como a avó e a progenitora, porque mesmo a pobre D. Juana contestava de improviso em latim aos discursos gratulatorios das cidades de Flandres. Logo no primeiro anno da sua assistencia em Portugal, a esposa de Manoel conseguiu que lhe representassem na côrte uma engraçada comedia latina, escripta por um estudante em ferias, emquanto Salamanca ardia em febre». In Carolina Michaelis de Vasconcelos, (1851-1925), Infanta D. Maria de Portugal (1521-1577) e as suas Damas, edição fac-similada, Enclave de Reabilitação Profissional da Biblioteca Nacional, Lisboa, 1994, ISBN 972-565-198-7.

Cortesia de BNacional/JDACT