De Volta de Ceuta
«(…) Um dos artigos fundamentais
do programa de vida nova, traçado em Ceuta por Camões, era, segundo vimos, a sua
reconciliação com aquela
Cuja lembrança e cujo claro
gesto
lhe reapareciam agora na
ulcerada alma, como que a encobrir o incomensurável vácuo que nela se fizera. Foram,
porém, baldados todos os esforços empregados por parte do poeta para realizar
este intento. Não lhe valeram satisfações, rogos nem queixumes, expressos com toda
a eloquência em admiráveis versos:
Caminha o dia todo o caminhante
E, emfim, lhe chega a noite
em que descansa;
Trabalha na tormenta o navegante,
Traz-lhe a clara manhã feliz
bonança;
Recobra o fruto fértil e
abundante
Da terra o lavrador, se
nella cansa:
Mas eu de meu cuidado e mal
tão forte
Tormento espero só, só crua
morte.
De ouvir meu dano, as
rosas matutinas
Condoídas se cerram, se emmurchecem;
Com meu suspiro ardente as
cores finas
Perdem o cravo, o lirio,
e não florecem.
Co'a roxa aurora as
pallidas boninas,
Em vez de se alegrarem, se
entristecem.
Deixam seu canto Progne e
Philomena,
Que mais lhes doe, que a
sua, a minha pena.
Responde o monte concavo
a meus ais,
E tu, como aspid, cerras-lhe
o ouvido;
Os indómitos, feros animais.
Sem humano sentir, mostram
sentido;
Mas em ti minhas dores desiguais
Nunca movem o peito endurecido.
Por muito que te chame,
não respondes,
E, quanto mais te busco,
mais te escondes.
Naquella parte donde
costumavas
Apascentar meus olhos e teu
gado,
Alli donde mil vezes me mostravas
Que era o pastor de ti mais desejado.
Vezes mil te busquei, por
ver se davas
Algum breve descanso a meu
cuidado.
Busco-te em vão no valle,
em vão no monte,
Qual o ferido cervo
busca a fonte.
Este lugar, de ti desamparado,
Em cujas sombras frias já
folgaste.
Agora triste, escuro, é já
tornado,
Que todo o bem comtigo nos
levaste.
Eras tu nosso sol mais
desejado;
Não temos luz, despois que
nos deixaste.
Torna, meu claro sol, torna
meu bem;
Qual é o Josué que te detém?
Despois que deste valle
te apartaste.
Não pára já algum gado, com
secura;
Secou-se o campo, desque
lhe negaste
Dos teus formosos olhos a
luz pura;
Secou-se a fonte donde já
te olhaste,
Quando menos, que agora,
áspera e dura.
Nega sem ti a terra, ouvindo
gritos,
Ás cabras pasto, e leite
aos cabritos.
Sem ti, doce cruel minha
inimiga,
A clara luz escura me parece;
Este ribeiro, quando a dor
me obriga.
Com meu chorar por ti contino
crece;
Não ha fera, a que a fome
não persiga;
Algum prado sem ti já não
florece.
Cegos estão meus olhos, nada
vem.
Porque não podem ver seu
claro bem.
……………………………………………
Torna, pois, já, pastora,
ao nosso prado.
Se restituir-lhe queres a
alegria;
Alegrarás o valle, o campo,
o gado,
E aquelle espelho teu da
fonte fria.
Torna, torna, meu sol tão
desejado;
Farás a noite escura claro
dia;
E Alegra já esta vida magoada.
Em que só tua ausência é parca irada.
Vem, como quando o raio transparente
Deste nosso horizonte,
que, escondido.
Deixa um certo temor á mortal
gente,
Causado de ver o orbe
escurecido;
E quando torna a vir, claro
e luzente,
Alegra o mundo todo entristecido:
Que assi é para mi tua luz
pura
Claro sol, como a ausência
noite escura.
Mas tu, 'squecida já do bem
passado
E do primeiro amor que me
mostraste,
Teu coração de mi tens
apartado,
Não menos que do valle
te apartaste.
Não te quero eu a ti mais
que a meu gado?
Não sou eu mesmo aquelle
que tu amaste?
Onde o meu erro viste ou
desvario,
Que pôde merecer-te um tal desvio?
……………………………………..
Se te apartas, por não ouvir
meu rogo,
Onde estiveres te hei de
importunar;
Posto que vás por agua, ferro
ou fogo,
Comtigo em toda a parte me
has de achar;
Que o fogo em que ardo e
a agua em que me afogo,
Emquanto eu vivo fôr, hão
de durar.
Pois o nó que me enlaça é
de tal sorte.
Que não se ha de soltar em
vida ou morte.
Neste meu coração sempre
estarás;
Emquanto a alma estiver com
elle unida,
Também o meu esprito
possuirás.
Despois que a alma do corpo
fôr partida.
Por mais e mais que faças,
não farás
Que deixe o amar-te nesta
e ess'outra vida.
Impossivel será que eternamente
Ausente estes de mi, estando ausente.
(Apesar de ausente, estarás sempre presente)
Foi improfícuo o recurso a pessoas de elevada posição social, que, condoídas
do pobre sonhador, despenhado da altura das suas ilusões, e receosas, por certo,
de uma funesta recaída, se prestavam a ouvir-lhe os queixumes e suspiros magoados».
In José Maria Rodrigues, Camões
e a Infanta D. Maria, Separata do Instituto, Imprensa da Universidade de
Coimbra, Coimbra, 1910, há memória do Mal-Aventurado Príncipe Real Luís
Philippe (3 1761 06184643.2), PQ 9214
R64 1910 C1 Robarts/.
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