quinta-feira, 20 de março de 2014

De Lúcia a Violeta. Maria Callas. Rita Cerdeiros. «… embora fique depois presa em nós tecidos pela mágoa na garganta, e quando a quero fazer sair de mim sai entrecortada, os portentosos legatos partem-se-me por vezes a meio ou antes do fim da frase mas tenho que reconhecer que hoje me escapam»

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Paris, princípios de Agosto de 1977
«Ouço a minha voz, para assim me certificar que sou, no que fui e no que, gostaria de acreditar, serei ainda. Ouço a minha voz, adentro destas portas, destas paredes que ora se estreitam e me sufocam, ora se alargam e me deixam tonta, ouço a minha voz e fico muito quieta, ouço a minha voz, uma vez e outra, para me certificar que de mim se trata, sei que estou dentro dela, que através de mim tomou corpo e forma, e alma, que, estonteante, tomou conta das arenas, das praças, e das salas dos teatros de ópera, ouço a minha voz porque ela é a única coisa que me resta, e é palpável e concreta, eu que vivi paredes meias com a invisibilidade e a transparência, debatendo-me com a falta de razões e de pontos de referência, quedando-me, aguada, num limbo de culpa e de inocência, do qual a minha voz me permitiu a saída, aos tropeções e com muita pressa, mas nem sempre completa. E eu estou aqui fechada nesta casa encerrada em recordações que me não libertam. Sento-me num cadeirão Luís XV, o piano, muito quieto, adquire tonalidades cinza que lhe protegem os sons e as teclas, a minha voz passeia-se incólume pelas minhas artérias porque me lembro dela, embora fique depois presa em nós tecidos pela mágoa na garganta, e quando a quero fazer sair de mim sai entrecortada, os portentosos legatos partem-se-me por vezes a meio ou antes do fim da frase mas tenho que reconhecer que hoje me escapam, os agudos quebram-se de encontro ao diafragma, que estilhaça, os graves perdem-se-me na garganta porque por vezes não encontram a ressonância, a extensão da minha voz encolheu sem qualquer razão nem lógica, meu deus, a verdade é que a minha voz hoje me escapa, foi minha mas fiquei dela amputada sem saber como nem quase me dar conta, a minha voz fazia parte integrante de mim, e tinha um timbre e uma cor e nuances palpáveis, e cobria com facilidade três oitavas, e estendia-se pelas pautas sempre de uma maneira renovada, era um desafio permanente e que me fazia falta, as notas estavam ali, perante mim, e eu levava a minha voz a percorrer cada uma de maneira inusitada, cada nota tinha uma modulação própria, cada nota era um mundo de cambiantes que eu trabalhava a meu bel-prazer deixando que a música encontrasse eco nas minhas vísceras, e eu tinha-as diante de mim e maravilhava-me de cada vez com a descoberta da inflexão certa, era como se cada nota fizesse despoletar em mim, e por instinto, uma resposta, depois havia o desafio de a lançar na tessitura adequada e com o volume apropriado ao sentimento que transporta, e ver a minha voz respondendo ao desafio desdobrando-se em cascata, e multiplicando as cores e o brilho e a luminosidade que comporta. A minha voz era eu porque ao sair de mim transportava-me consigo fazendo com que eu me mantivesse em contacto com o mundo à minha volta, era como se eu saísse de mim materializando assim a minha alma, que adquiria contornos e espessura, e uma plasticidade outra e concreta.
Eu era a minha voz e hoje sinto que não sou nada. Eu era a minha voz e, ao perdê-la, perdi-me também a mim própria, fiquei esvaziada e deserta, e tudo dentro de mim se estiola e degrada, tudo dentro de mim se amordaça e me deixa calada, os olhos fecham-se-me, as órbitas dilatam-se, os poros da pele secam, e o meu corpo torna-se um invólucro que já não presta, porque já não serve para nada. Sinto as pálpebras pesadas, os fantasmas andam à solta pela casa, os duendes há muito que saíram por aquela porta, as gazelas deixaram o jardim e já não descem pelas escadas, as flores já não invadem as salas, as pessoas já não atravessam os salões, o burburinho dos talheres à mesa dissipou-se como uma borrasca, há um fluxo do tempo que deixa um espaço aberto às coisas que entretanto nascem, mas eu não sei se farei parte delas, nem por quanto tempo ainda ficarei viva na memória das pessoas que me escutam, e das que depois de mim permaneçam. Esta casa está silenciosa, a avenida em que habito é tranquila e, com as janelas fechadas, não entra nestas salas, sinto-me apartada do mundo como se não tivesse nele um lugar nem fosse nele esperada, para além da minha voz sinto que não sou nada, e a minha voz faz parte de um passado que me espreita e guarda, mas que também me mata e traz acorrentada.
Olho para o piano, levanto-lhe a tampa percorro-lhe com os dedos as teclas e sinto-me inspirada, a minha voz alegra-se e sai de mim vibrante e depurada e logo fico a pensar que a terei de volta sempre que quiser e a qualquer hora, mas depois falhará relembrando-me que me escapa, e a essa ideia, meu deus, os olhos enchem-se-me de lágrimas, o coração aperta-se-me estrangulando-me a garganta, dando então uma desculpa para a voz que em vão espera e espreita». In Rita Cerdeiros, Maria Callas, De Lúcia a Violeta, Editora Pergaminho, Lisboa, 1998, ISBN 972-711-139-4.

Cortesia de Pergaminho/JDACT