«Aquele que algum dia ousou
especular sobre estas quatro coisas: o que há em cima? O que há em baixo? O que
havia antes do mundo? O que haverá depois? Mais valia não ter nascido». In Talmude
da Babilónia, Haguigah
«No dia em que o Messias entregou a alma, o céu não estava nem mais nem
menos escuro do que nos outros dias; nenhuma luz o iluminava, como um sinal
prodigioso. O sol escondia-se atrás de um nevoeiro espesso, mas os raios
conseguiam romper através do seu tecto opaco. As nuvens anunciavam uma chuva
fina ou de pedra, que nunca chegou a vir refrescar a paisagem terrosa. As
trevas sobre a terra não eram profundas, e o céu dava ainda uma luz ténue. Era,
em suma, um dia como outro qualquer, nem triste nem alegre, nem escuro nem
claro, nem extraordinário nem sequer inteiramente banal. Mas essa normalidade era
talvez um presságio daquela ausência de presságio, não sei. A sua agonia foi
lenta, difícil. A respiração eternizou-se num queixume prolongado, imenso de
desespero. Os cabelos e a barba sem cor deixaram de exprimir o ardor da
sabedoria, dispensada à sua volta como um bálsamo, como uma cura. O olhar esvaziou-se
da chama que o abrasava sempre que, com paixão, levava a todos as suas boas palavras
e profecias, sempre que proclamava o advento do mundo novo. O corpo, torcido
como a roupa, devastado, era só sofrimento, contusão e chaga aberta. Os ossos sobressaíam
sob a carne, sulcos macabros. A pele enrugada, como um fato retalhado, esfarrapado,
um sudário repartido, era um rolo desdobrado e profanado, um pergaminho vetusto
cujas letras de sangue se perdiam em torno das linhas escarificadas, por entre
rasuras e remorsos, uns gatafunhos. Os membros estirados, trespassados por
agulhas, maculados de manchas violáceas pareceram cair. Das mãos esburacadas, curvadas
sob a dor, escorreu o sangue; uma lava morna brotada do coração, subindo até à boca
ressequida, árida das palavras de amor que ele tanto gostava de pronunciar, prostrada
numa expressão muda de medo e de surpresa, a última, mesmo antes do ataque. O
peito, um cordeiro apanhado pelo lobo, saltou, como se o coração fosse sair tal
qual estava, nu, despedaçado, sacrificado. Depois ficou paralisado, embriagado
pelo próprio sangue como pelo vinho jorrando do lagar. O horror e qualquer
outra expressão abandonaram os traços fatigados do seu rosto lívido, onde
decerto se espelhava, olhos esgazeados e boca entreaberta, a inocência. Iria ao encontro do Espírito? Mas
o Espírito abandonava-o precisamente quando ele, na derradeira esperança,
parecia invocá-lo e chamá-lo pelo nome. Não houve sinal algum para ele, o rabi,
o mestre dos milagres, o redentor o consolador dos pobres, o que cura os
doentes, os alienados e os paralíticos. Ninguém o podia salvar, ninguém, nem
mesmo ele. Deram-lhe um pouco de água, Estancaram-lhe as dores. Uns disseram
que um raio traçara no horizonte um risco luminoso, outros pensaram tê-lo
ouvido chamar o pai com uma voz forte que ressoou durante muito tempo, como se
descesse dos céus, inevitavelmente, sucumbiu.
Já tinha uma idade avançada e no entanto não estava doente. Os membros
da comunidade pensavam que ele talvez fosse imortal e dividiam-se entre a
espera de um acontecimento, a morte, o reaparecimento, a ressurreição, e a do
não acontecimento que a sua longevidade implicava, a eternidade. Assim, quer
morresse, quer continua-se vivo, seria sempre um milagre. Era uma tarde de
Abril. De acordo com os numerosos médicos que o acompanhavam, o coma que o
acometera no dia anterior fora provocado por insuficiência cardíaca. Entre as
três e as três e meia da tarde, interromperam as transfusões. O corpo foi
transportado de ambulância do hospital, lugar da sua agonia, para o domicílio.
Aí, puseram-no no chão e cobriram-no com um lençol, de acordo com a tradição.
Em seguida abriram o gabinete onde o rabi fazia as suas orações, estudava e
lia, e os fiéis recitaram os textos sagrados. Os que o amavam, em grande
número, vieram prestar a última homenagem ao mestre. Contava milhares de
discípulos em todo o mundo que tinham fé nele, que acreditavam que ele era o
Rei-Messias, o apóstolo dos tempos novos, precursor de um reino outro pelo qual
esperavam há tanto tempo, desde a noite dos tempos. As visitas prolongaram-se
até à noite. Depois colocaram o corpo num caixão fabricado com o lenho do labor
e da oração, o da grande secretária em carvalho à qual o rabi passara tantas
horas a estudar. Nas imediações da casa mortuária, um dispositivo policial
conseguia dificilmente conter a multidão. Na cidade, a circulação estava
bloqueada; os carros não conseguiam abrir caminho por entre aquela massa
compacta de homens de negro, de mulheres em pranto e de crianças que, às
centenas de milhar, se tinham reunido para chorar o rabi. Alguns agarravam a
cabeça entre as mãos, abatidos. Outros gritavam a sua dor pelas ruas. Outros ainda,
aqui e além, dançavam ao som de melodias hassídicas
nostálgicas ou alegres e cantavam canções conhecidas: o nosso mestre viverá, o nosso rabi, o Rei-Messias. Não iam
a um enterro; estavam à espera da Ressurreição, do fim do Êxodo, e do começo da
era da libertação. Então poderiam admitir que estavam n terra de Israel e
chamar a esse país o seu. Não o tinha
ele dito, por parábolas e alusões? Tinham-no entendido. Tanto
sofrimento e tanta dispersão. Tantas humilhações e tantas mortes. Mais tarde tinha acabado, mais
tarde tinha ficado muito longe. Era ele, aqui e agora: era ele que eles
esperavam para mais tarde, há tanto tempo.
O funeral foi adiado para o
dia seguinte ao da sua morte, para dar tempo a todos de chegarem». In Eliette
Abécassis, Qumrân, O Enigma dos Manuscritos do Mar Morto, 1996, Edições
Sicidea, Espanha, 2006, ISBN 978-84-611-4996-4.
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