O absurdo e o
suicídio
«(…) O assunto deste
ensaio é precisamente essa relação entre o absurdo (da cessação do CPD) e
o suicídio (que os políticos pretendem com os mais idosos), a medida exacta
em que o suicídio é uma solução para o absurdo. Pode-se tomar por
princípio que, para um homem que não trapaceia, o que ele acredita verdadeiro
deve-lhe pautar a acção. A crença na absurdidade da existência deve, pois, lhe
dirigir o comportamento. É uma curiosidade legítima se indagar claramente, e
sem falso pateticismo, se uma conclusão de tal ordem exige que se abandone o
mais que depressa uma condição incompreensível (retirar o CPD?). Refiro-me
aqui, é claro, a homens dispostos a estarem de acordo consigo mesmos (não há coragem…).
Apresentado em termos claros, esse problema pode parecer ao mesmo tempo simples
e insolúvel. Mas se supõe erroneamente que problemas simples suscitam respostas
que não o são menos e que a evidência implica evidência. A priori, e
invertendo os termos da questão, assim como alguém se mata ou não se mata,
parece só haver duas soluções filosóficas, a do sim e a do não. Isso seria belo
demais. Mas é preciso incluir a parte daqueles que, sem consumar interrogam
sempre. Mas, chego, aqui, a ironizar: trata-se de maioria (de ladinos…).
De igual modo, vejo que os que respondem não podem agir como se pensassem sim.
Com efeito, se concordo com o critério nietzschiano, eles pensam sim de um modo
ou de outro. Ao contrário, acontece muitas vezes que aqueles que se suicidam
estavam convencidos do sentido da vida (tinham a ilusão dos cravos…). Tais
contradições são constantes. Pode-se mesmo dizer que elas nunca foram tão vivas
quanto neste ponto em que a lógica,
inversamente, parece tão desejável. É um lugar-comum comparar as
teorias filosóficas com o comportamento daqueles que as professam. Mas é
preciso ressaltar que, entre os pensadores que não admitiram um sentido de
vida, com excepção de Kirilov, que pertence à literatura, de Peregrinos, que se
origina da lenda, e de Jules Lequier, que aventa a hipótese, nenhum conciliou sua lógica a ponto de
recusar sua vida. Por zombaria, menciona-se muito Schopenhauer ao fazer
o elogio do suicídio ante uma mesa bem fornida. Aí não há nenhum motivo para brincadeira.
Esse modo de não levar a sério o trágico não é tão grave, mas acaba por julgar
um homem.
Diante de tais contradições e tais obscuridades, é preciso
acreditar, consequentemente, que não há nenhuma relação entre a opinião que se
pode ter sobre a vida e o gesto que se faz para deixá-la? Nada de
exageros nesse sentido. No apego de um homem e/ou mulher à vida há alguma coisa
de mais forte que todas as misérias do mundo. O julgamento do corpo vale tanto
quanto o do espírito e o corpo recua ante o aniquilamento (dos políticos de
meia…). Adquirimos o hábito de viver antes de adquirir o de pensar.
Nessa corrida (proletários uni-vos) que todos os dias nos precipita um pouco
mais para a morte, o corpo mantém esta vantagem inalterável. Enfim, o essencial
dessa contradição se acha no que denominarei a escapada por ser, ao
mesmo tempo, um tanto menos e mais que o entretenimento no sentido pascaliano. A
escapada mortal que constitui o terceiro tema deste ensaio é a esperança
(basta! Fora!). A esperança de uma outra vida que é preciso merecer ou a trapaça dos que
vivem não para a própria vida mas para alguma grande ideia que a ultrapassa ou a
sublima, lhe dá um sentido e a atraiçoa. Assim, tudo contribui para
embaralhar as cartas (da cessação do CPD). Não é à toa que até agora fizemos
trocadilhos e fingimos acreditar que recusar à vida um sentido conduz
necessariamente a declarar que ela não vale a pena ser vivida (deseja isso,
senhor puridade?). Na realidade, não há nenhuma correspondência obrigatória
entre esses dois julgamentos. Apenas é necessário se recusar a se deixar perder
no meio das confusões, das dissociações ou inconsequências (da sua utopia de
Erasmo?, não acredito, falta visão) até o momento apontadas. É preciso separar
tudo e ir directo ao verdadeiro problema. Uma pessoa velhinha/velhinho não se
mata porque a vida não vale a pena ser vivida, eis sem dúvida uma verdade,
improfícua, no entanto, pois não passa de um truísmo. Mas esse insulto à
existência (~ 600€), esse desmentido em que ela é mergulhada provém do facto de
ela não ter nenhum sentido? Se a sua absurdidade exige que se lhe escape pela
esperança ou pelo suicídio, eis o que se precisa clarear, perseguir e ilustrar,
afastando tudo o mais. É o absurdo que domina a morte: é
preciso dar a este problema precedência sobre os outros, fora de todos
os métodos de pensamento e dos jogos do espírito desinteressado. Os matizes, as
contradições, a psicologia que um espírito objectivo sempre consegue introduzir
em todos os problemas não têm lugar nessa pesquisa e nessa paixão. O que aí é
necessário é tão-somente um pensamento injusto, isto é, lógico. Isso não
é fácil. É sempre cómodo ser lógico. É quase impossível ser lógico até o
fim. Os homens que morrem por suas
próprias mãos seguem assim até ao fim a inclinação do seu sentimento. A
reflexão sobre o suicídio me dá, então, a oportunidade de tratar do único
problema que me interessa: existe uma
lógica até para a morte? É algo que eu só posso ficar sabendo se
perseguir, sem paixão desordenada, e apenas sob a luz da evidência, o
raciocínio cuja origem assinalo aqui (a cessação do CPD para os mais
necessitados e que estão em lares). É o
que chamo um raciocínio absurdo. Muitos chegaram a começá-lo. Não sei se se
contentaram com isso.
Quando Karl Jaspers, ao
mostrar que era impossível fazer do mundo uma unidade, escreve que Essa limitação me conduz a mim mesmo, aí
onde eu não tenho como me livrar, um pouco antes, de um ponto de vista objectivo
que só faço representar, aí onde nem eu mesmo ou a existência de outrem já não
pode se tornar objecto para mim, evoca, além de tantos outros, esses
lugares desertos e sem água onde o pensamento atinge os seus confins. Além de
tantos outros, sim, não há dúvida, mas sob que pressões para se livrarem disso!
A essa última volta, em que o pensamento vacila, muitos homens ou mulheres chegaram,
e entre os mais humildes. Esses, então, renunciavam ao que tinham de mais caro
e que era a sua vida. Outros, príncipes diante do espírito, abdicaram também,
mas foi no suicídio de seu pensamento, em sua mais pura revolta que o fizeram.
O verdadeiro esforço, ao contrário, é de não ceder o tanto quanto possível e
examinar de perto a vegetação barroca desses lugares distantes. A perspicácia e
a tenacidade são espectadores privilegiados para o jogo inumano em que o
absurdo, a esperança e a morte se alternam nos seus lances. O espírito
pode então analisar as imagens dessa dança ao mesmo tempo elementar e subtil, ilustrando-as
e revivendo-as ele próprio antecipadamente». In Albert Camus, O Mito de
Sísifo, Ensaio sobre o Absurdo, Livros do Brasil, ISBN 978-972-38-2759-0.
Cortesia de
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