Estudos
Camilo Castelo Branco. A
novela camiliana. Sua evolução
«(…) Até meados da década de 50, a obra novelística de Camilo não se
individualiza notavelmente dentro das tendências principais que entretanto se
verificam na ficção em prosa de autoria portuguesa ou traduzida. Tendo-se
estreado em letra redonda com paródias de estudante, com sátiras e crónicas
anticabralistas, com poesias ultra-românticas, com dramas históricos e um
folheto de cordel sobre um crime hediondo, publica por 1848, em O Eco Popular e O Nacional, uma série de
folhetins em que, no fundo, se debatem os conflitos sociais e morais da
juventude romântica (A Última Vitória de um Conquistador,
O
Esqueleto, etc.). Trata-se, em geral, de um galã esgrouviado e
macilento, segundo a moda de Arlincourt e outros escritores românticos, que,
embora de boa índole, se deixa corromper pela podridão social urbana (ideia
de Rousseau), seduz uma mulher e a abandona, enfastiado, ou que, então, a
ama desvairadamente, mas tem de ceder perante a imposição de um pai tirano que
a pretende casar com um rival tão lorpa como rico, de tudo isso resultando
enrouquecimentos, mortes pela tísica, pelo suicídio ou assassinato. Camilo não mais abandonará de todo este
esquema, que se relaciona com a idealização de uma como que religião do amor, em que as
aspirações ideais, o prelibar de
bem-aventuranças, só podem recortar-se contra um fundo trágico de
impossibilidades sociais, ou de crimes e sacrilégios; em que, por outro lado, a
posse física nunca deixa de gerar o fastio quanto à mulher angelizada, o
solilóquio lírico de tédio, ou a responsabilização vaga da sociedade ou do
destino por tudo isso.
Nesta fase inicial nota-se também, em certos folhetins, como no drama Agostinho
de Ceuta, a influência do historicismo e do moralismo grandíloquo de
Herculano, que se cruzam em Anátema (1851), a sua primeira
novela editada em volume, com a influência de Nossa Senhora de Paris de
Hugo (o tema da paixão
sacrílega e rancorosa de um sacerdote). Anátema contém já
saborosos intermezzos de diálogos,
comentários e superstições rurais, e uma curiosa simpatia pelo artesanato
seiscentista ainda não proletarizado ou aburguesado, mas constitui também a
transição numa tendência que conduz à série novelesca constituída pelos Mistérios
de Lisboa (1854) e O Livro Negro do Padre Dinis (1855):
a tendência melodramática para o enredo de perseguição, expiação e terror macabro
através de várias gerações de uma mesma família, com enjeitamentos, raptos,
prisões, crimes, reaparições e reconhecimentos inverosímeis, temperados por
incidências de paródia sorridente que aliás não destoa do folhetim romântico,
como já conhecemos das Viagens de Garrett. Camilo procura satisfazer assim o gosto
do romance negro de aventuras, lançado pelo pré-romantismo inglês (H. Walpole, Ana
Radcliffe) e afim do melodrama de Pixérécourt, e de que Soulié, Nodier, Féval,
Sue e o próprio Vítor Hugo foram os principais transmissores. É, no entanto,
significativo o facto de o nosso novelista esbater, se não eliminar, a crítica da
miséria e das degradações morais, das perversões que a miséria provoca, tal
como a encontramos nos livros de Eugène Sue e Vítor Hugo, que imita. Camilo
manifestou mesmo, e mais que uma vez, a sua antipatia em relação à literatura
de crítica social, nomeadamente em relação a Hugo, Balzac e George Sand. Nestes
romances folhetinescos daquilo que poderemos considerar ainda a sua fase
inicial, o que sobressai é o intricado quadro genealógico das grandes expiações
criminais, e a personificação sumária dos grandes e abstractos móbeis que
atribui ao comportamento humano: o ódio, o sentimento amoroso, o remorso, a
caridade, e sobretudo, como em Herculano, a
vingança.
Atendendo à voga de que a novela de Camilo já então gozava, podemos concluir que o tipo de romance que
os feuilletons da imprensa francesa
consagraram poucos anos depois da Revolução de 1830 e que, na sua melhor
época (aquela que medeia entre essa revolução e a de 1848), teve a seu serviço
alguns dos melhores e mais progressivos romancistas, adquiriu, ao lançar-se em
Portugal por inícios da Regeneração, um carácter acentuadamente
sonhador, evasivo, de certo modo análogo ao da ficção historicista. Mas, pelo
meio do decénio de 1850 esboça-se uma
viragem no sentido do realismo, da novela
da actualidade, em que a lição balzaquiana, embora enfraquecida e até
mesmo teoricamente criticada, já faz sentir os seus efeitos». In
Óscar Lopes, Ensaios Camilianos, Fundação António de Almeida, Greca Artes
Gráficas, Porto, 2007, ISBN 978-972-8386-69-6.
Cortesia da F. António de Almeida/JDACT