Um hesitante chefe de linhagem
«(…) Por essa altura, Juan I de Castela acelerava os preparativos para
levar a cabo uma nova invasão de Portugal, desta feita em três frentes. Assim, enquanto
o próprio monarca avançava com a hoste régia em direcção a Elvas, o seu
primeiro objectivo estratégico ,e ao mesmo tempo que a armada castelhana
fundeava no Tejo em frente a Lisboa, um outro exército, sob o comando do
arcebispo de Toledo, Pedro Tenório, recebia a missão de irromper através da
região da Beira.
Os homens de Trancoso
A pouco e pouco, os efectivos convocados pelo arcebispo começam a afluir
ao local de concentração, a vila de Ciudad Rodrigo. Mas enquanto o grosso das
forças não chegava, um contingente liderado por Juan Rodriguez Castañeda, que
um ano antes tinha sido derrotado por Nuno Álvares em Atoleiros, e que contava
ainda com as forças de Pedro Suarez de Toledo e de Álvaro Garcia de Albornoz,
decide antecipar-se e toma a iniciativa de cruzar a fronteira. No total, são
perto de 300 lanças de cavalaria, 200 ginetes e um número desconhecido, mas não
muito elevado de peões, que então avançam contra território português através
do Vale da Mula. Daí progridem por Almeida, Pinhel e, depois de contornarem
a praça-forte de Trancoso, defendida por Gonçalo
Vasques Coutinho e de onde poderia vir a maior ameaça, dirigem-se para Viseu.
Satisfeitos com o rasto de destruição deixado à sua passagem e, acima de tudo,
com o saque obtido com a pilhagem daquela cidade, a coluna, que segundo
Salvador Dias Arnaut teria perto de 3 quilómetros de extensão, inicia a marcha
de regresso a Ciudad Rodrigo, seguindo precisamente o mesmo trajecto que, dias antes,
haviam percorrido em sentido inverso. A tudo isto, os fidalgos da região
assistiam passivamente e sem esboçarem qualquer reacção. Incapazes de
individualmente mobilizarem uma hoste suficientemente numerosa para enfrentar o
inimigo, só mesmo a união de todos poderia colocar termo à incursão. E foi João
Fernandes Pacheco quem tomou a iniciativa de tentar convencer os desavindos
Gonçalo Vasques Coutinho e Martim
Vasques da Cunha a integrar uma mesma força e a avançar sobre o inimigo.
Tratava-se de uma missão complicada, não só porque tinham defendido posições
antagónicas, meses antes, nas cortes de Coimbra, mas também porque as queixas
entre ambos eram já antigas, com acusações mútuas de usurpações territoriais.
Mas o mais difícil seria fazer com que Martim Vasques, que dispunha de
forças mais numerosas, aceitasse o Coutinho
como líder da coligação, uma condição que este parece ter imposto logo desde o início.
A muito custo, João Fernandes acaba por conseguir ultrapassar esses
obstáculos e convence Martim Vasques a acertar o comando do rival. De
tal forma que todos acabam por se reunir em Trancoso.
Celebrado com um jantar, a que se juntaram também Egas Coelho e Gil
Vasques Cunha, irmão de Martim Vasques, o encontro serviu igualmente para
decidir qual a melhor estratégia a adoptar face ao avanço inimigo, para avaliar
quais as forças de que poderiam dispor e, certamente, para distribuir o
dinheiro disponibilizado pela cidade do Porto para o pagamento da hoste então
reunida. E no meio de todo esse debate, rapidamente terá ficado claro para
todos que só uma batalha campal poderia pôr fim à investida castelhana. Mas
antes disso, era essencial perceber a dimensão e composição do exército inimigo
e identificar com precisão a rota que este pretendia seguir no regresso a
Ciudad Rodrigo. Só assim o comando português poderia, por um lado, escolher o
local e o terreno indicado para o confronto e, por outro, efectuar um
planeamento táctico tão rigoroso quanto possível. Para isso foi decidido
incumbir o escudeiro Afonso Rodrigues Batissela de, a pretexto de
entregar aos comandantes castelhanos uma carta de desafio, fazer uma observação
atenta da hoste adversária e transmitir essas informações a Gonçalo Vasques Coutinho e seus companheiros,
tal como afirma Fernão Lopes. No entanto, o testemunho do cronista
apresenta diferenças assinaláveis relativamente ao de Froissart, segundo
o qual teria sido o próprio João Fernandes Pacheco, que em Middelburg
teve a oportunidade de relatar ao cronista francês a sua versão dos factos, a
efectuar essa missão. Fosse como fosse, parece evidente que, na sequência desta
bem-sucedida tarefa de espionagem, a hoste liderada por Gonçalo Vasques Coutinho passou a dispor dos dados necessários para
preparar os passos seguintes. Assim, no dia 29 ou 30 de Maio de 1385, como assinala a lápide tumular de
um dos cavaleiros mortos nessa batalha, os portugueses instalam-se na Veiga
de Trancoso, escassos quilómetros a sudoeste daquela praça-forte.
Segundo Fernão Lopes, o contingente de Gonçalo Coutinho era composto por 120 lanças de cavalaria, o de Martim
Vasques Cunha por 150 e o de João Fernandes Pacheco por 30, a que se
acrescentavam ainda as forças numericamente menos expressivas de Gil Vasques
Cunha e de Egas Coelho. No total dificilmente ascenderiam a mais de 300 lanças,
reforçadas por um número significativo de peões, talvez perto de um milhar, na
sua maioria mal-armados e pouco preparados ou motivados porquanto, como afiança
o cronista, não passariam de indivíduos mobilizados à força entre os comçelhos e lavradores da comarqua».
In
Miguel Gomes Martins, Guerreiros Medievais Portugueses, A Esfera dos Livros,
Lisboa, 2013, ISBN 978-989-626-486-4.
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