«(…) El-Rei adorava a gabarolice, mesmo que misturasse de inverdades o
discurso. Normalmente, captava relatos ouvidos e fingia sabedorias. El-Rei fala
de causa como se estivesse presente onde nunca fora: - Navegar é arte. Vamos
pelo Norte sempre aperrados à Estrela Polar e pelo Sul ao bom Cruzeiro, sabemos
latitudes pelas tábuas de declinação que fizeram lixo desses portulanos
antigos. Temos cartas de marear como
nenhuns, e nos arquivos reais abundam os protótipos, todos os dias
aperfeiçoados. Andamos criando roteiros com todas as indicações
necessárias à navegação. E temos naus, novas naus que tornam patéticas as caravelas,
pois são maiores e de velas quadradas ou redondas, que transportam e guerreiam
a um tempo, e até pomos os condenados a remar em bergantins. A marinharia é
coisa nossa e descobrimos novas ilhas, novas terras, novos mares, novos povos;
e o que mais é; novo céu, novas estrelas. Não sabendo o que dizia, El-Rei fazia
sempre um figurão. Chamou El-Rei o moço de câmara e anunciou-lhe que iria
visitar obras do reino; deslocava-se ao arsenal para saber como andavam os
novos canhões e aos estaleiros a demandar se as caravelas para manter o
comércio da Guiné estavam ou não em acabamentos. Sentia-se El-Rei, no entanto,
cada vez mais chagado. As varizes escorriam-lhe pernas abaixo, um incómodo,
algumas ulcerosas, outras prestes a rebentarem, uma agastação, irra!
Que canseira seria aquela jornada... mas estava determinado. Para
mitigar as penas das reais pernas afectadas, decidiu vestir-se a rigor. Foi ao
espelho e mirou-se, admirando-se. Tinha os braços compridos, anormalmente
compridos; os dedos das mãos chegavam-lhe abaixo dos joelhos. Os olhos eram
leitosos, verde fugidio... Que importância tinha que fosse, afinal, feio como
um desses bichos tremendos que diziam ter o diabo posto a correr pelas terras de África? Também seu primo
morrera com corpanzil de monstro e o povo não deixara de lhe chamar Perfeito.
Aliás, o povo... O povo, pensa El-Rei, é coisa suja que só serve para alindar
cortejos se se mantiver a boa distância. E se alguém tivesse o desaforo de
chamar carranca, ou bode-chibo, ou apenas feio e deformado a
El-Rei, teria um frasquinho de real veneno à sua espera, ou uma lâmina bem
afiada para nutrir goelas maldicentes...
Gil pigarreou nesse exacto momento, esperando ordens. - Achais-me bonito?, perguntou, com
malícia, El-Rei. E Gil, que há dias andava a fugir de D. Bosta que dele, como
de tantos e tantas, desejava favores de cortesã, estremeceu dentro do gibão. Pois o rei também?!!! - Serei mais feio que o bastardo do meu
primo Julio? Gil resmungou qualquer sonoro fingimento de resposta. Alheado,
El-Rei mirava-se. - Tenho umas belas pernas, embora andem muito chagosas. Gil,
sentindo-se salvo, agarrou-se à frase: - Falaram-me de uma bruxa que vive para
os lados de Monchique, ao pé dos banhos das nascentes... El-Rei estremeceu, por
sua vez, ao lembrar-se do seu antecessor primo-rei que tivera esperanças de
curar estranha maleita em essas mesmas bandas. O rei recuperou-se: - Uma bruxa? Pois trazei-ma.
Trazer-ma à socapa do cardeal e de toda a Igreja. Dar-lhe-ei mil moedas se me
curar... Algumas dessas moedas serão até de oiro...
Avaro, El-Rei, mesmo se sua sorte e paz em jogo... - E então? - quis saber de novo
finda uma longa pausa: - Sou bonito? Gil
desesperava: - Sois um belo rei - disse por fim. - E tu um belo servidor. Devia
cortar-te a língua por seres tão falso, tão lisonjeador... Mas sabe bem ouvir-te.
Estás perdoado. Perdoado se fores por mim procurar essa nova feiticeira. Quando
regressardes ambos, dar-te-ei, também a ti, uma bolsa cheia de moedas. Talvez
até alguma de oiro. - Muito vos agradeço, senhor meu rei - disse Gil que se
sentia coberto de suores frios, não sabendo o que dizer. - E dar-te-ei mais,
para teu governo. Dar-te-ei doze chicotadas bem contadas sobre a pele do teu
arcaboiço ou, doze vergastadas por esse espinhaço fora, por mentires tão
descaradamente a teu rei e senhor. Eu, um belo rei, irra! Gil agitou-se da cabeça aos pés. Ignomínias da sorte! Lamentou-se
Gil. Se ao menos não servisse a El-Rei mas, por exemplo, a D. Bosta. Esse, esse
sim, era bem mais fácil de satisfazer...» In Alexandre Honrado, Os Venturosos, Círculo
de Leitores, Braga, 2000, ISBN 972-42-2392-2.
Cortesia de CLeitores/JDACT