jdact
Introdução
«A correspondência de um escritor, dado o seu carácter intimista, confessional
e introspectivo, faculta-nos frequentemente dados biográficos e psicológicos
relevantes e constitui uma inesgotável fonte histórico-cultural. Acerca destes
acervos pródigos em surpresas, se manifestou lapidarmente Eça de Queirós:
[...] uma correspondência revela
melhor que uma obra a individualidade, o homem; uma obra nem sempre aumenta o
pecúlio do saber humano, uma Correspondência, reproduzindo necessariamente os
costumes, os modos de sentir, os gostos, o pensar contemporâneo e ambiente, enriquece
sempre o tesouro da documentação histórica. Temos depois que as cartas sendo o
produto quente e vibrante da sua vida, contêm mais ensino que a sua filosofia,
que é apenas uma criação impessoal do seu espírito. Uma Filosofia oferece
meramente uma conjectura mais que se vai juntar ao imenso montão das conjecturas;
uma Vida que se confessa constitui o estudo duma realidade humana, que, posta
ao lado de outros estudos, alarga o nosso conhecimento do Homem (correspondência de Fradique
Mendes, 1969).
Escrever, livros e cartas, constituía para Wenceslau Moraes um acto
de catarse, uma compensação para a extrema solidão que lhe alongava os dias,
uma ponte erigida para o mundo. Wenceslau
viveu grande parte da sua vida longe da terra natal, dos familiares e amigos.
Com efeito, desde a sua juventude começou a trilhar as sete partidas do mundo,
Estados-Unidos, Médio Oriente, Moçambique, Timor, Macau, China e Japão,
primeiramente na qualidade de oficial da Marinha e, mais tarde, de Cônsul. As
suas estadas em Portugal foram, portanto, breves e pouco frequentes, sendo a
última vez que pisou terra portuguesa em 1891.
Desenraizado, torturado, aguilhoado pela saudade, afectivamente descompensado, Wenceslau supriu a ausência dos seus
entes queridos com uma correspondência assídua, de que se conhecem centenas de cartas
maioritariamente inéditas. Reúne-se a correspondência dirigida pelo escritor ao
médico naval Sebastião Peres Rodrigues, ao Cônsul de Portugal em Kobe, Cerveira
Albuquerque, e ao engenheiro-maquinista João Manuel Guerreiro Amorim. Este
espólio, inédito na sua esmagadora maioria, encontra-se depositado na
Biblioteca Central da Marinha, em Lisboa. A correspondência é relevante pois
pertence a três fases distintas e marcantes da vida do escritor:
- a sua vivência em Macau e em Kobe;
- o seu quotidiano em Tokushima, cidade do sul do Japão onde se homiziou, na sequência da sua demissão de Cônsul e de oficial da Marinha, em 1913;
- o desmoronamento físico e psíquico dos últimos e dramáticos anos da sua vida.
Revelam-nos estas cartas a depressão que sempre acompanhou Wenceslau, as fracturas afectivas
sucessivas, o relacionamento difícil com o outro, a sua sensibilidade dorida, a
insegurança que sentia relativamente à sua obra, a ligação tempestuosa mantida
com a chinesa Vong-Ioc-Chan e com os dois filhos, José Sousa Moraes e
João Sousa Moraes, a afectividade extrema que nutria pela esposa japonesa O-Yoné
e pela sobrinha Ko-Haru. Este volume deixa ainda transparecer a mundividência
política do escritor. Com efeito, a sua postura perante o regicídio que teve
lugar em 1908, bem como excertos de
outras cartas, refutam plenamente a tese do seu monarquismo, levantada
ignominiosamente na sequência da sua abrupta demissão em 1913, considerada como uma reacção ao regime republicano que
despontava. Por outro lado, revela-nos também que Wenceslau se manteve crítico relativamente à anarquia, ao populismo
e ao nepotismo que se foram gradualmente instaurando nas hostes dirigentes
republicanas, à semelhança do que aconteceu com outras figuras relevantes da
época como Raul Proença e António Sérgio. Abra-se um parêntesis
para nos socorrermos de um depoimento inédito de Sebastião Peres Rodrigues,
acerca das suas ideias políticas, que é bem elucidativo e fidedigno pois foi
feito por alguém que o conheceu bem de perto:
Não as tinha positivas. Não
indiferente, mas de critério puramente negativista, descrente das boas
intenções dos politicantes. Em política colonial indignava-o a sistemática
espoliação do indígena e tinha por hipócritas todas as afirmações oficiais da
pretendida assistência e igualização liberal. Quanto a formas de governo não se
descosia, mas revelava-se céptico e sem simpatia alguma pelos homens do seu
tempo que propagandeavam as ideias avançadas no sentido de substituir a
República à Monarquia. Também não simpatizava com a realeza, de que ao
contrário de muitos outros da sua classe, não procurava aproximar-se na
intenção de melhorar a sua carreira, pois isso ser-lhe-ia facilitado pelas suas
relações de família [...]. Era livre pensador, imbuído das ideias dos filósofos
enciclopedistas (carta de 9 de Janeiro de
1888) [...].
A correspondência dirigida a Sebastião Peres Rodrigues, que
apresenta algumas lacunas, constitui o núcleo mais importante, facto que decorre
das relações privilegiadas que mantinham, forjadas a partir de 1886, data em que se encontraram na
canhoneira Douro, em viagem para
Moçambique». In Wenceslau de Moraes, Cartas do Extremo Oriente, Fundação Oriente,
Lisboa, 1993, ISBN 972-9440-07-7.
Cortesia de FOriente/JDACT