segunda-feira, 31 de março de 2014

Prosa no 31. O Maravilhoso e o Quotidiano no Ocidente Medieval Jacques le Goff. «Apesar dos jogos das variantes e dos artifícios da literatura hagiográfica, parece-me poder captar nos homens da Idade Média inclusive um certo sentido de cansaço em relação aos santos…»

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O Maravilhoso no Ocidente Medieval
«(…) Os que até agora se pronunciaram sobre o maravilhoso parecem muitas vezes influenciados pela obra, aliás muito interessante, de Tzvetan Todorov sobre a literatura fantástica, e em particular pela distinção que ele estabelece entre o estranho e o maravilhoso, em que o primeiro, o estranho, pode ser identificado pela reflexão, ao passo que o maravilhoso conserva sempre um resíduo sobrenatural que nunca conseguirá explicar-se senão recorrendo ao sobrenatural. Estamos portanto no mundo do sobrenatural, mas parece-me que nos séculos XII e XIII o sobrenatural ocidental se divide em três âmbitos que se recobrem, mais ou menos, com três adjectivos: mirabilis, magicus, miraculosus.
Mirabitis. É o nosso maravilhoso com as suas origens pré-cristãs. Abarca o conjunto dos elementos. Magicus. É sabido que o termo em si podia ser neutro para os homens do Ocidente medieval, porquanto teoricamente se reconhecia a existência de uma magia negra que tinha a ver com o diabo, mas também de uma magia branca que, em contrapartida, era considerada lícita. De facto, o termo magicus, e o campo por ele designado, rapidamente deslizou para o lado do mal, para o lado de Satanás. Magicus é portanto o sobrenatural maléfico, o sobrenatural satânico. O sobrenatural propriamente cristão, aquilo a que justamente poderia chamar-se o maravilhoso cristão, é o que procede do miraculosus; mas o milagre, o miraculum, parece-me ser apenas um elemento, e eu diria até um elemento bastante restrito, do vasto âmbito do maravilhoso. Procurei, sem na verdade descer a pormenores, indicar em que sentido o miraculosus não era mais que uma parte do maravilhoso e até como ele tendia a fazê-lo desvanecer.
Em primeiro lugar porque uma das características do maravilhoso é o ser produzido, certamente, por forças ou por seres sobrenaturais, que são, precisamente, inumeráveis. E uma marca de tal facto pode ser encontrada, creio eu, no plural mirabilia da Idade Média. A realidade é que não apenas temos um mundo de objectos, um mundo de acções diversas, mas que por detrás deles há uma multiplicidade de forças. Ora, no maravilhoso cristão e no milagre há um autor, e um só, que é Deus, e é aqui exactamente que se põe o problema do lugar do maravilhoso não apenas numa religião, mas numa religião monoteísta. Temos depois uma regulamentação do maravilhoso no milagre. Temos simultaneamente um controlo e uma crítica do milagre que, no limite, faz desvanecer o maravilhoso, e por fim temos aquilo a que eu chamo uma tendência para racionalizar o maravilhoso e em particular para despojá-lo mais ou menos de um carácter que me parece essencial, a imprevisibilidade. Se referirmos etimologicamente o maravilhoso a raízes visivas, descobriremos nele, como traço fundamental, a noção de aparição. Ora, o milagre, se depende apenas do arbítrio de Deus, que é exactamente o que o diferencia dos acontecimentos naturais, também estes, como é óbvio, queridos por Deus, mas por Ele decididos uma vez por todas, tendo-se assim estabelecido uma certa regularidade no mundo, não escapa por sua vez ao plano divino e a uma qualquer regularidade. E se o milagre se realiza através daqueles intermediários que são os santos, é preciso dizer que a situação em que estes vão encontrar-se é tal que o verificar-se do milagre por sua intercessão é previsível. Apesar dos jogos das variantes e dos artifícios da literatura hagiográfica, parece-me poder captar nos homens da Idade Média inclusive um certo sentido de cansaço em relação aos santos, já que a partir do momento em que um santo entra em cena já se sabe o que ele vai fazer. Uma vez que se encontre numa determinada situação, sabe-se desde logo que procederá a uma multiplicação dos pães; que operará uma ressurreição, que expulsará um demónio. Dada a situação, já se sabe o que irá acontecer. Temos assim todo um processo de esvaziamento do maravilhoso. E eu acrescentaria que, no que se refere ao cristianismo, alguma dificuldade em aceitar o maravilhoso parece-me provir do facto de que, olhando bem, na Bíblia não lhe é dado um grande espaço». In Jacques le Goff, Il meraviglioso e il quotidiano nell’occidente medievale, Gius, Laterza, 1983, Roma, O maravilhoso e o quotidiano no ocidente medieval, Edições 70, Lisboa, 2010, ISBN 978-972-44-1563-5.

Cortesia de E70/JDACT