Reconhecimento dos laços
agora as tuas mãos estranhas ao medo
procuram um abrigo mais puro, o lume
agora o tempo se mede por búzios
e os nomes flutuam mais leves que
as algas
podia abrigar duas formigas
e contar-te a história do mundo
desde que foi criado
podia se deixasses
escrever aquela história
da filha louca dos Matildes
a falar horas seguidas
da lucidez assustadora
deste poema
tudo podia
já que
os anjos do vento desenham na água
o fulgor inesperado
do teu gesto
A presença mais pura
Nada do mundo mais próximo
mas aqueles a quem negamos a palavra
o amor, certas enfermidades, a presença mais pura
ouve o que diz a mulher vestida de sol
quando caminha no cimo das árvores
a que distância da língua comum
deixaste
o teu coração?
A altura desesperada do azul
no teu retrato de adolescente há centenas de anos
a extinção dos lírios no jardim municipal
o mar desta baía em ruínas ou se quiseres
os sacos do supermercado que se expandem nas gavetas
as conversas ainda surpreendentemente escolares
soletradas em família
a fadiga da corrida domingueira pela mata
as senhas da lavandaria com um não
esquecer fixado
o terror que temos
de certos encontros de acaso
porque deixamos de saber dos outros
coisas tão elementares
o próprio nome
Ouve o que diz a mulher vestida de sol
quando caminha no cimo das árvores
a que distância deixaste
o coração?
O olhar descoberto
Diz-me se
na água reconheces o rumor
adormecido nos búzios
Diz-me se o outono tem
a ver com as algas
com a incerteza das folhas
e se há um sentido oculto
no rodar das estações
Diz-me se
toda a imagem é engano
ou filha enjeitada
do fogo
Diz-me se é certo
que o tempo
é um único olhar
prolongado nos dias
se a vida é o avesso da vida
e se há morte
Poemas de José Tolentino
Mendonça, in ‘A Noite Abre Meus Olhos’
JDACT