Tudo começa na Babilónia
As loucuras amorosas
«(…) A este quadro da vida sexual, os textos médicos acrescentam o seu
toque. São estes textos que nos dão conta das relações íntimas sacrílegas, e
que por isso trazem a infelicidade, com as mulheres reservadas aos deuses; ou incestuosas, com parentes femininos mais
próximos, a mãe ou a irmã; e relações sexuais com mulheres grávidas até uma
data próxima da de darem à luz. Sublinham-se igualmente as doenças que o paciente
podia contrair, aparentemente por contágio, no
momento em que estava na cama com uma mulher, ou seja, quando com ela fazia
amor, e infecções venérias a que se chamava doenças
do coito. Era o caso, por exemplo, da uretrite: Assim que o paciente sente fortes dores no pénis, que perde naturalmente
esperma quando urina, que já não tem erecção e se sente incapaz de fazer amor e
que o seu pénis não deixa de criar pus, é porque sofre de uretrite
[tradução literal: corrimento]. Duas
ou três passagens, que contêm algo de comovente porque o retrato, afinal,
sempre nos é familiar, descrevem até o mal
de amor: quando o paciente não pára
de tossir; quando frequentemente lhe faltam as palavras; quando constantemente
fala sozinho e ri sem razão a todo o momento [...], quando se sente
habitualmente deprimido, com a garganta apertada, sem prazer pela comida e pela
bebida e repetindo sem parar e através de grandes suspiros: Ah, meu pobre
coração!, ele sofre de mal de amor. E o texto, que, salvo algumas doenças
específicas, se ocupa geralmente do sexo masculino, acrescenta uma vez esta
referência, que não posso deixar de considerar enternecedora: Para o homem e para a mulher, vem tudo a
dar no mesmo!
O amor-sentimento
Eis algo que ultrapassa o simples erotismo e que nos introduz no
domínio do amor-sentimento. Sobre este capítulo, os documentos técnicos que a consulta das tábuas 103
e 104 nos possibilitou já não nos servem de ajuda. É na literatura propriamente
dita que temos maior possibilidade de encontrar alguns ecos destes suspiros,
destes enlevos, desta chama, doçura e ternura, por vezes destes tormentos e
deste furor, que traduzem a afeição visceral pelo outro, a irreprimível necessidade que se experimenta pelo outro, o
verdadeiro amor do coração, que por certo pode suscitar erotismo e dele se
apossar, embora não precise dele para se alimentar, mas sim para o animar e
fazer dele algo de nobre e à escala do homem. Poemas e canções de amor profanos são raros no que foi recuperado
das literaturas mesopotâmicas. O único texto em nosso poder, quase completo, de
cerca de 150 linhas e de que nos restam dois terços, é, contudo,
verdadeiramente notável. Composto no ano de 1750 antes de Cristo, em acádico
arcaico e ultraconciso, com um vocabulário específico e por vezes obscuro,
repleto de símbolos que, decorridos trinta e oito séculos, nos escapam
completamente, está dividido em estrofes
curtas, que constituem os elementos de um diálogo entre dois amantes. Pelo
menos é nítido que tudo se passa no simples plano dos sentimentos e do coração,
não há a menor alusão ao sexo ou qualquer referência erótica! O tema é muito
simples, a amante suspeita de que o seu bem-amado tem um fraco por outra
mulher. Ela lamenta-se; grita o seu amor, que floresce naturalmente num
ciúme ao mesmo tempo terno e impetuoso. Todavia, ela diz estar convencida de
que vai reconquistar o leviano com a sua lealdade. Eis como, citando algumas
estrofes ao acaso, ela se expressa:
- Eu mostrar-me-ei fiel / Minha testemunha será Ishtar-a-Rainha. / O meu amor prevalecerá / e confundirá essa língua malvada [a rival]. / Doravante prender-me-ei a ti / E compensarei o teu amor com o meu! [...];
- Não, ela não te ama! / Que Ishtar-a-Rainha a humilhe / E que, como eu, ela perca o sono, / E que as suas noites sejam perturbadoras e opressoras! [...];
- Sim! Eu abraçarei o meu amado: / Cobri-lo-ei de beijos / E não cessarei de lhe consumir os olhos! / Assim vencerei a minha rival / Assim reencontrarei o meu bem-amado! [...];
- Pois é o teu feitiço que procuro / É do teu amor que eu estou sequiosa!
Em face destas declarações enternecedoras e ardentes, o enamorado não
consegue manter o seu papel: tal como todos os homens nesta situação, e podemos
confirmá-lo ao longo da noite dos tempos!, ele limita-se às desculpas, ao mau humor
e às grosserias que, apesar de tudo, não desencorajam a sua interlocutora:
- Não digas nada! / Não quero discursos! / De que serve falar para nada dizer! / Mas não, eu não te minto! / Na verdade, é querer agarrar o vento / Esperar algo de sério de uma mulher! [...];
- Mais do que tu, volto a pensar! / Nas tuas astúcias antigas! / Mas eis-nos bem despertos [do nosso sonho]! E, todavia, não sinto no meu coração / a mínima ternura por ela [sempre a rival!] [...];
- Não acredites, pois, no que te repetem: / Que não mais serás a única dos meus olhos! / Mas, se queres a verdade, / Hoje, o teu amor não é meu, / Que inquietação e que desgosto! [...].
E, no entanto, vencido por fim pela fidelidade, sensatez e ternura da
sua amante, ele volta, tal como ela esperava:
- Sim, tu és a única que importa! / O teu rosto é sempre tão bonito! / Tal como antigamente, / Quando eu me agarrava a ti / E repousavas em mim a tua cabeça! / Nada mais te chamarei além de Sedutora, / E sábia será o teu único título, para mim! / Que Ishtar seja minha testemunha: / De ora avante, a tua rival será nossa inimiga!
Repito-o, este é um documento único, de real interesse, na medida em
que é consagrado à exaltação do amor puro e desinteressado de uma mulher,
espalhando uma sombra sobre o sentimento que lhe consagra o homem que ela ama».
In
Georges Duby, Jean Bottéro, Amour et Sexualité on Occident, Société d’Éditions
Scientifiques, Paris, 1991, Amor e Sexualidade no Ocidente, Terramar, Lisboa,
1998, ISBN 972-710-053-8.
Cortesia de Terramar/JDACT