«Partimos de dois versos
da tragédia Prometeu Agrilhoado,
como os classicistas presentes já reconheceram, pertencentes àquelas duas
longas tiradas em que o Titã enumera os benefícios que proporcionou à
humanidade. Este é o mito, o primeiro inventor, que principia na descoberta do
fogo e daí parte para as diversas invenções com que presenteou os homens. Mostra-nos
um Prometeu
bem diferente do que conhecíamos das duas epopeias conservadas de Hesíodo.
Aí ele é sobretudo o embusteiro, ou melhor, o trickster, para
usar a palavra consagrada pelos historiadores da religião. Na Teogonia
(521-616) o seu primeiro dolo situa-se no tempo da querela entre
deuses e homens, que leva à instauração de sacrifícios. É então que o filho de Jápeto
prepara um enorme boi, divide-o em duas partes e apresenta-o a Zeus,
para que, em nome dos deuses, escolha a que lhes convier. Zeus prefere a
que está coberta de gordura, mas que, na verdade, apenas encobre um montão de
ossos, pelo que daí em diante será essa a parte das vítimas que os homens
hão-de sacrificar às divindades. Hesíodo tem o cuidado de acentuar que Zeus
percebeu o engano, o que tem levado os melhores especialistas a supor que teria
havido uma versão mais primitiva que punha em causa a omnisciência do deus. Daí
resulta que Zeus deixa de enviar o raio sobre os freixos, e de assim
proporcionar aos mortais o uso do fogo. É aqui que se insere o segundo
expediente do Titã: roubar o fogo no recesso de uma cana, para o dar
aos homens. A esta segunda infracção respondeu Zeus ordenando a Hefestos
que criasse a primeira mulher. Os traços essenciais deste mito são retomados em
Os Trabalhos e Dias (42-105), com mais ênfase na
colaboração de todos os deuses, que a enriquecem com os seus dons (de onde o
nome de Pandora). É um desses deuses, precisamente Hermes, aquele
que também é exemplo de criador de embustes (veja-se o Hino Homérico a
ele dedicado), o que infunde no peito da nova criatura mentiras, palavras enganosas, coração ardiloso. As ciladas
sucedem-se: Hermes é encarregado
de levar essa sedutora figura a Epimeteu, que a recebe como mulher, não
obstante o seu irmão Prometeu tê-lo advertido
do perigo de aceitar presentes do deus supremo. A esse mal se junta um outro,
que é o de Pandora destapar a vasilha (ou jarra de Pandora é
habitualmente designada como caixa ou boceta, devido ao facto
de Erasmo a ter assim interpretado, certamente pensando na caixa que Psyche
abre, apesar de prevenida, em Apuleio, Metamorfoses) que
continha todos os males, deixando-os escapar pelo mundo. Como todos sabem, fica dentro apenas a Esperança.
Se demorámos um pouco na
referência a este mito tão conhecido, é porque ele tem sido objecto de
múltiplas interpretações, desde as fantasias psicanalíticas até às do
pós-estruturalismo e às da actual ideologia. Uma das teorias que, essa sim, nos
parece ser aplicável neste caso é a de Jung, a qual permite ver aqui um
exemplo de um arquétipo que nos ajuda a explicar a razão de histórias
semelhantes ocorrerem em mais do que um povo. E, se pode ser verosímil que a
origem do mito grego esteja relacionada com o de Atraharsis, que figura
na XI tabuinha do poema babilónico de Enuma Elish (à Egiptomania do séc. XIX sucedeu a da
Babiloniomania em voga), é sempre difícil esclarecer qual o modo de
transmissão. Também é forçoso reconhecer que é das versões gregas, as de Hesíodo
e, sobretudo, a do Prometeu
Agrilhoado, que descendem as muitas obras literárias (em que se
contam nomes tão grandes como Goethe e Shelley), plásticas ou musicais (como a
cantata de Carl Orff, no grego original, estreada em 1968).
Aqui temos de fazer um parêntesis, porquanto certamente nesta altura já todos repararam
que não mencionámos vez nenhuma o nome do autor da famosa tragédia. É que, se
os Antigos nunca puseram em dúvida, tanto quanto sabemos, que ela fosse
de Ésquilo,
a questão levantou-se, em 1929, com Schmid,
e reacendeu-se a partir de 1977, com
Mark Griffith, The Authenticity of the Prometheus Bound, renovada
em 1993 com a de R. Bees, Zur
Datierung des Prometheus Desmothes, sem contar que o autor de uma das
melhores edições críticas de Ésquilo, West (1990) continua, desde o
seu primeiro artigo sobre a matéria, publicado onze anos antes, a negar-lhe a
autenticidade, com base na métrica, técnica dramática, vocabulário, sintaxe,
estilo.
Não vamos examinar a
questão, excepto num único aspecto: saber
se o drama em causa é anterior ou posterior ao mito que Platão, no Protágoras,
atribui ao sofista homónimo. A grande dificuldade reside, como escreveu
Dodds, em decidir com alguma certeza
quanto é de Protágoras e quanto é de Platão. E continua: O passo reflecte seguramente não o que
Protágoras de facto disse, mas o que Platão pensava que ele poderia ter dito
numa determinada situação. Em relação ao filósofo, acrescentaríamos que a
questão é semelhante à do discurso de Lísias no Fedro,
acerca do qual ainda hoje se discute se é mais um elemento a adicionar ao corpus do célebre orador
ático ou uma paródia do seu modo de argumentar e do seu estilo. Ora, já em 1949, Reinhardt, seguido por
muitos outros, entendia que esta fala de Prometeu representa uma concepção
pré-sofística e marcadamente arcaica, uma vez que não há referência ao modo de
produzir alimentos (pastoreio e agricultura) e que certas invenções
técnicas atribuídas ao Titã, como a roda do oleiro, nem sequer
são mencionadas; ao passo que o mito que se lê no Protágoras nos
apresenta Prometeu a corrigir a falta de previdência de seu irmão Epimeteu,
por não equipar a raça humana, que os deuses haviam modelado, com as defesas
necessárias à sua sobrevivência, tal como havia feito com os animais. É assim
que Prometeu
decide furtar a Atena e a Hefestos as habilidades técnicas dessas
divindades, juntando-lhes o uso do fogo. Porém, estas soluções ainda
não são suficientes: isolados, os humanos não conseguiam defender-se dos
ataques dos animais, e por isso resolvem reunir-se e fundar cidades. Zeus,
que tudo observava, encarrega então Hermes de lhes levar respeito
e justiça,
sem os quais a vida social não pode ter estabilidade. Daqui o discurso transita
para a demonstração, que se propusera fazer, de a virtude ser susceptível de se
ensinar». In Maria Helena Rocha Pereira, As Artes de Prometeu, As combinações com
as Letras, Memória de tudo, Trabalho criador das Musas, Faculdade de Letras da
Universidade do Porto, 2009, ISBN 978-972-8932-42-8.
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