A Dedução Transcendental de 1781. Dedução A
«O vector normalmente omitido no exame e na exegese da Crítica
da Razão Pura não só se desenvolveu paralelamente à elaboração da Filosofia
Crítica como se foi gradualmente diferenciando da exposição ortodoxa. A Dedução
Transcendental das Categorias constitui o ponto fulcral onde se encontram
explicitados os motivos que marcam o início da vertente heterodoxa do kantismo.
Enquadrando a Dedução Transcendental da edição A no seu contexto próprio, isto é, na Analítica
Transcendental, compreendemos sem dificuldades a articulação desta última
secção da Teoria Transcendental dos Elementos com a Estética Transcendental.
Toda a apresentação preliminar da lógica Transcendental que Kant intitulou Ideia duma lógica transcendental,
estabelece os parâmetros em que se movem a Estética e a Analítica
Transcendentais. Resumindo este segmento da Crítica da Razão Pura,
fica-se com uma noção inequívoca quanto à autonomia duma faculdade chamada Entendimento que é inteiramente
distinta duma outra chamada Sensibilidade.
Esta prevalência do Entendimento
refere-se tanto à sua origem como à sua aplicação. A conclusão segue-se,
inevitável; a experiência só é possível pela acção do Entendimento, estando a multiplicidade sensível inteiramente
submetida a esta faculdade. Mas como exibir desde logo a dupla elaboração duma
problemática que nos mereceu simultaneamente
a designação de heterodoxa e ortodoxa? Recuemos um pouco no tempo. Se
bem que na carta a Markus Herz de 21 de Fevereiro de 1772 o filósofo não tivesse ainda extraído as consequências que o
conduziriam à instauração da Filosofia Transcendental, o facto é que já na
célebre missiva se encontram reunidas todas as condições que tornaram possível
a posterior edificação do sistema.
As reflexões que constituem o conteúdo da carta convergem para a
pergunta que o filósofo considera justamente encerrar o mistério da metafísica:
… sobre que fundamento se apoia a
relação com o objecto do que designamos em nós por representação? Há
que colocar ab initio duas hipóteses, diz Kant; ou o sujeito é a causa da representação do objecto ou este é a causa
das representações do sujeito. Mas, continuamos a ler, se a
representação sensível representa as coisas como elas aparecem e a representação
inteligível as coisas como elas são, então pergunta-se: … como podem as coisas ser-nos dadas senão pela maneira como nos afectam,
e, por outro, como se explica a correspondência que têm as representações
inteligíveis com coisas para cuja existência estas representações em nada
contribuíram? São ainda os ecos do estudo de 1770 que ressoam nesta carta escrita dois anos mais tarde. Mas
convém sublinhar, enquanto Kant não
apresentar, nove anos depois, a solução do problema das relações da
sensibilidade e do entendimento com o seu objecto, alguns pontos mais
significativos deste momento em que se esboça um gradiente que acabará por
estruturar o espaço da problemática de 1772.
Por uma questão de precaução, que trará os seus frutos, repare-se que o Idealismo
Transcendental é uma opção perante duas possibilidades que o autor da Crítica
da Razão Pura, com a sua proverbial honestidade intelectual, coloca bem
visíveis e lado a lado. Trata-se em primeiro lugar de compreender que a solução
circunscreve a pergunta referida na carta a uma relação imanente entre os conteúdos
da consciência e um objecto que se revela de igual modo estritamente imanente.
Mas o que é fundamental e não deve esquecer-se é que a questão que surgiu
primitivamente a Kant é a da
relação entre um objecto em si, independente e exterior à consciência e os conteúdos
da consciência que representam essa realidade em si.
Mas em nenhum segmento da 1.ª Crítica se pode observar melhor
a evolução incipiente da heterodoxia kantiana do que naquela secção dos postulados do pensamento empírico
que Kant chamou Refutação do idealismo. Os comentadores idealistas que
sublinham a ortodoxia kantiana, como é o caso de Vleeschauwer, procuram
minimizar esta subsecção da Analítica
dos princípios, afirmando que a sua interpolação no texto quebra não só
a ordem expositiva da própria Crítica da Razão Pura como a própria
coerência conceptual dessa secção. A circunstancialidade e o tom polémico da Refutação mais não seriam que o
resultado das críticas aceradas de Garve e especialmente de Feder. No estudo,
não só se apresenta a Refutação do
idealismo, de 1787 como
significativamente inserida no contexto do ideário kantiano como também se põe
em evidência o papel central requerido por aquela secção para uma avaliação
final do Idealismo Transcendental kantiano. Não deixa de ser
surpreendente a forma como um comentador da estatura de Vleeschauwer procura
fazer da Refutação do idealismo
da edição B um caso especial da 1.ª Refutação de 1781, isto é, do Quarto Paralogismo, quando é, de
facto, de dois argumentos inteiramente distintos que se trata. No Quarto
Paralogismo, a existência dos objectos exteriores é inteiramente
restrita à sua aparência, e Kant
conclui que, com efeito, ninguém pode sentir
fora de si, mas somente em si mesmo, e, por conseguinte, toda a consciência de
nós mesmos não nos fornece nada a não ser apenas as nossas próprias
determinações». In António Fragoso Fernandes, Da Aporia à
Cisão, Interpretação do Opus Postumum Kantiano, Estudos Gerais, Série
Universitária, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa, 2006, ISBN
972-27-1471-6.
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