«(…) Era, em 1965, uma quantia elevada (hoje não
passa de um montante modesto, que mal dá para adquirir o De rebus Emanuelis gestis de Jerónimo Osório,
de 1571, que é obra importante mas
não edição muito rara). Tarcísio Trindade, como livreiro, estava então
nos seus princípios. Era um bibliógrafo inteligente, culto e informado, mas sem
a experiência que hoje tem, e aprestava-se a constituir família. Se lhe fosse
dado fabricar, com a venda da obra umas centenas de contos, seria esse um bom
primeiro passo para que o matrimónio começasse a converter-se em património.
Despedimo-nos com a promessa para muito breve, de um artigo acerca do Tratado de Confissom. O mês de
Maio, para um jovem assistente universitário, era, porém, nesses tempos, um
período difícil. Impunha-se corrigir e classificar todos os exames escritos,
pois se aproximava o momento das reuniões dos conselhos de docentes
correspondendo a um determinado ano de cada secção. Por outro lado, não tendo ainda
em meu poder a fotocópia do livro e dispondo apenas das notas que redigira
durante os escassos sessenta minutos do encontro, fui tomado por um certo
receio. Deixei, pois, correr alguns dias, dedicados à tarefa de corrigir as
provas dos alunos, sem me ocupar do livro.
No dia 15 ou 16 Tarcísio
Trindade chamou-me ao telefone, da sua casa de Alcobaça. Desejava saber se
já tinha escrito o artigo e quando seria publicado. Disse-lhe da grave
responsabilidade que representava, a nível público, anunciar uma descoberta tão
importante e revolucionária. Não escreveria o artigo se me não fosse dado poder
dispor da obra durante, pelo menos, três horas de estudo. Pusemo-nos de acordo
para um novo encontro em minha casa, das 21 às 24 horas do dia 18 de Maio. Se
retive esta data, é porque, nesse dia, proferi, no teatro do Palácio Foz, uma conferência
sobre a Divina Commedia de Dante,
pois em 1965 celebrava-se o sexto centenário do nascimento do grande poeta. Foi-me
dado, no serão desse dia, fazer um exame aprofundado do paleótipo. Tomei novas
notas, desenhei cuidadosamente a marca de água, para a confrontar com as que Briquet
reproduz no seu célebre manual e fiquei de posse de uma xerocópia. O artigo foi
escrito de jacto, entusiasticamente. O título apareceu com pouco rigor, porque
se não trata, de facto, do primeiro incunábulo português, mas do primeiro incunábulo em
português.
Escrevi a Natércia
Freire uma carta evidenciando a importância extraordinária do anúncio: o Tratado de Confissom antecipava
de seis anos a entrada da tipografia de língua portuguesa no nosso país. Além
disso, abriam-se novos horizontes ao estudo da nossa incunabulística.
Se, em 1965, se descobria um livro
quatrocentista anterior ao De uita
Christi, totalmente ignorado por todos os bibliógrafos portugueses e do
qual não havia rastro em nenhum grande reportório bibliográfico, quem pode
garantir-nos que não existirão outros livros impressos em português, e porventura mais antigos? Natércia
Freire, que é uma mulher cultíssima, além de muito inteligente, e é igualmente
poeta, de uma sensibilidade delicada e subtil, portanto capaz de entender e de
sentir o significado espiritual de uma tal descoberta, mandou logo publicar o
artigo que apareceu em fundo no Diário de Notícias de 25 de Janeiro
desse ano de 1965. Cumprira o
prometido e, absorvido pelas reuniões de final do ano, não saía de casa. Os
diários desse final de mês não falavam, porém, senão do Tratado de Confissom. Raúl
Rego, distinto bibliófilo, e elemento muito activo na militância contra
a situação política, soube aproveitar os factos então ocorridos para pôr em
causa a negligência do poder.
Acontecera que uma senhora adquirira por 400 000 escudos o Tratado de Confissom que Tarcísio Trindade e Américo
Marques entregaram ao livreiro mais prestigioso de Lisboa, João
Rodrigues Pires, director de O Mundo do Livro. A pessoa que,
em troca dos quatrocentos contos em bilhetes de mil escudos, recebera o
documento, desapareceu tendo deixado ao livreiro um endereço desconhecido e,
como é fácil de adivinhar, não correspondendo à verdade. A polícia ocupou-se do
acontecimento e acabou por deslindar a meada. Teria o livro sido vendido para o estrangeiro? perguntava Raúl Rego. Pelo que me diz respeito,
antes de enviar o artigo ao jornal, dirigi uma carta ao … anunciando-lhe o
achado e exortando-o a adquirir a obra para a Biblioteca Nacional. Estava, portanto,
tranquilo com a minha consciência. Aquele alto funcionário do Ministério deve
ter consultado as autoridades neste
domínio bibliográfico. Esses ilustres técnicos tranquilizaram-no decerto com um
discursozinho mais ou menos deste teor:
Senhor Director Geral: Não dê V. Ex.ª ouvidos a palavreado sem
consistência. O P.M. é um moço cheio de entusiasmo e de muitas leituras, mas, neste
caso, tomou a nuvem por Juno. Não dê importância, porque o nosso primeiro livro
impresso em português é o De uita
Christi, não tenha disso a menor dúvida. Consulte o patriarca da
nossa Bibliografia, Barbosa Machado. Leia Inocêncio. Veja no Samodães e no
Ameal. Leia o Brunet, o Hain, o Graesse, o Polain, o GesamtKatalog. Nenhum
destes clássicos menciona o Tratado de Confissom. Não duvide,
Excelência: trata-se de um presunto incunábulo.
Um comunicado oficial
falou, de facto, do presunto incunábulo.
O comprador tinha sido um culto banqueiro, o Miguel Gentil Quina, possuidor de
uma excelente livraria, o qual, não desejando que se soubesse quem era o
comprador, encarregou uma sua secretária de agir por ele. Acabou por ir
pessoalmente ao Ministério para pôr à disposição das autoridades o corpo do delito per amor di pátria».
In
José Pina Martins, De como Identifiquei o Tratado de Confissom, Chaves 8. VIII,
1489, Revista ICALP, vol. 15, 1989.
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