A assembleia dos templários
«(…) Não acontecia o mesmo com os outros associados, que,
salvo raras excepções, mostravam verdadeiro entusiasmo. Na verdade, aquelas
normas claras, simples, com um fim determinado, eram já de per si um poderoso meio de propaganda. A divisão em classes permitia
utilizar as faculdades de cada um, segundo os melhores interesses da ordem; ao passo
que a possibilidade de passagem de um grau para outro abria um vasto horizonte
à mais nobres das ambições, e destruía a disposição aristocrática, tão
prejudicial a qualquer corporação instituída para governar os homens. Todavia,
houve um dos irmãos que se levantou: era este um nobre holandês, que vinha procurar,
no meio dos Templários aliados para o seu país, que se preparava para se
insurgir contra a Espanha. Devemos
então procurar por toda a parte filiados para a nossa ordem? disse ele.
Devemos abrir as fileiras da nossa instituição,
até agora tão zelosamente recusadas, a todos aqueles que nos parecerem aptos
para nos auxiliarem na empresa? Sem dúvida, respondeu com certa altivez o
presidente e parece-me que todos os poderão aceitar, desde que não tem dúvida
em o fazer o senhor de Beaumanoir, que é tão nobre como o rei de França! Oh! Não foi como censura ou queixa que
eu disse isto, apressou-se a declarar o holandês. O que eu queria fazer sentir era que o nome da nossa antiga ordem, o
sagrado nome do Templo, soaria mal aos ouvidos de um povo, que nos esqueceu, ou
que só se lembra de nós pelas vis calúnias que os inimigos do Templo espalham
contra nós. Por isso, entendo que na nova organização do Templo é
necessário que mudemos de nome. Irmão, disse afectuosamente o senhor
de Beaumanoir, o que propões já foi pensado pelos Sete Senhores, que
acharam que isso era razoável e sensato. O antigo Templo desmoronou-se; mas nós
trabalharemos para edificar outro, e sem dúvida o havemos de conseguir. A obra,
que empreendemos, é uma obra de reedificação; somos os pedreiros da humanidade.
Temos, pois, deliberado chamar-nos Pedreiros
Livres. Apoiado!,
gritou quase unânime a assembleia, na qual a voz do príncipe de Conde ressoava
não menos entusiástica do que a dos outros filiados. Então, disse Beaumanoir,
erguendo-se, a assembleia aprova as
deliberações dos Sete Senhores? Então sois unânimes em aprovar esta transformação, que deve por a nossa ordem a
par dos maiores potentados da terra? Sim! Sim, gritaram
muitíssimas vozes.
Mas uma voz potente dominou aquele tumulto e proferiu estas palavras: Oponho-me eu! Quem?, perguntaram ameaçadoramente alguns associados, mais
excitados do que os outros. Eu,
trovejou o peregrino, levantando-se majestoso impotente, apesar da miséria dos seus
andrajos. Eu, um dos Sete Senhores! Eu, Inácio de Loiola! Um longo frémito
de surpresa percorreu toda aquela multidão. Oito ou dez fidalgos, quase todos
espanhóis, aproximaram-se de Loiola, prontos a defenderem-no fazendo dos seus corpos
um escudo, se as disposições hostis da assembleia aumentassem. Mas Beaumanoir
com um gesto restabeleceu o silêncio na sala. Depois, voltando-se para Inácio
de Loiola, perguntou com brandura: Irmão,
então tu és partidário da consagração do estado atual?... E és precisamente tu, o mais audaz e
empreendedor de todos nós, aqueles que nós teríamos escolhido para chefe supremo
se os nossos estatutos nos consentissem ter um chefe… és tu precisamente que te
opões aos nossos planos de reforma e sustenta as antigas ordens? Pelo contrário, disse Inácio de Loiola,
eu desejo uma transformação muito mais
vasta e completa do que a vossa; mas
quero que ela se faça com outra inteligência, e segundo um plano já preparado e
escrito por mim. E porque é que, segundo os nossos usos, não falaste dessa tuas intenções no Conselho dos Sete
Senhores? Ter-te-iamos escutado com afecto de irmãos, e teríamos
procurado satisfazer o teus justos desejos. Tinha a certeza de que havíeis de
fazer-me oposição, e por isso resolvi dirigir-me directamente à assembleia.
Estou no meu direito; pelo nosso estatuto os Sete Senhores são todos iguais entre si, e a preeminência
concedida ao mais velho é de honra, mas não de autoridade. Fala, então, disse
Beaumanoir. Conhecemos os teus direitos e respeitá-lo-emos; mas lembra-te
também dos teus deveres, Inácio de Loiola, porque senão… O peregrino respondeu com
um gesto altivo àquelas ameaçadoras palavras. Fez-se um grande silêncio na
assembleia; os espanhóis amigos de Loiola chegaram-se ainda mais para os
Senhores para ouvirem e defenderem o seu amigo. Inácio de Loiola tirou de sob o
hábito algumas cartas manuscritas, pôs-se em pé e começou a falar.
Inácio de Loiola
Irmãos! Bem sabeis qual a razão que me obrigou a abandonar o
capítulo do Templo. Meu primo, António Manriquez, duque de Najare e grande de
Espanha, tinha-me chamado para ir servir sob a sua bandeira. Os meus sete
irmãos já me tinham precedido na carreira das armas, e eu, tinha completado os
meus vinte anos, considerar-me-ia vil e desonrado se hesitasse um momento; por
isso, corri a alistar-me no número dos defensores de Pamplona. Segundo as condições do tratado de Noyon,
aquela fortaleza devia ser restituída à França; mas o nosso glorioso rei Carlos
V, por ofensas que tinha recebido do rei de França, resolveu puni-lo
conservando aquela praça. Foi-me confiado o comando da praça, quando em 1521 André de Foix a atacou à frente
das tropas francesas. Tomada a cidade pelas forças superiores dos inimigos,
fechei-me na cidadela da fortaleza, decidido a resistir até ao fim, e assim o
fiz; mas quando de espada em punho defendia a brecha, fui ferido por uma
pedrada numa perna. Caí sem sentidos, e quando os recuperei a fortaleza e eu
tínhamos caído em poder dos franceses. Fui tratado com singular cortesia por
aqueles guerreiros, acostumados a apreciar a valentia dos inimigos. Curei-me, e
por ordem do senhor de Foix fui transportado para o meu palácio paterno, na
Biscaia. Ali tive de permanecer longo tempo, porque o meu ferimento tinha sido
tão mal curado, que foi necessário tornarem-me a desmanchar a perna para a
arranjar de novo. Perdoai-me, meus irmãos, se vos roubo o tempo, falando-vos
destes miseráveis tormentos que sofri, mas preciso dizer-vos tudo para vos
poder explicar a maneira miraculosa por que se efectuou a mudança da minha
alma. Eu tinha, como vós bem sabeis,
todos os predicados para ser um cavaleiro belo e elegante. Imaginai por isso
como eu ficaria quando soube que aquele ferimento me condenava a ficar coxo
para toda a vida!... Adeus esplendor do vestuário, pompas daí pedrarias,
amor das damas!... Adeus, volteios rápidos da dança e todas as alegrias que o
prestígio da beleza proporciona aos homens! Podeis
crer, meus irmãos, que nenhum suplício humano se poderia equiparar ao que eu sofri
quando me falaram daquela desgraça, que agora considero como uma bênção do céu…
Pareceu-me que a causa do mal era um osso da perna que se me tinha
deslocado, e por isso quis que mo tirassem, e apesar das dores atrozes que isso
me causou, consenti que os médicos mo serrassem. Pois vendo que apesar de tudo
uma perna me ficara mais curta do que a outra, submeti-me a outro tormento
ainda mais horrível: apliquei à perna mais curta um aparelho que a cada
instante lhe imprimia um esticamento, que me causava dores atrozes. Os ossos
estalavam, as dores faziam-me emperlar um suor frio à raiz dos cabelos, mas
tudo foi inútil: fiquei coxo»
In Ernesto Mezzabota, O Papa Negro, História da Europa Medieval e seus
costumes, tempo da narrativa; entre 1500 -70 d. C, 1848, Rio de Janeiro, 1947,
corrigido por Milton Barros Carvalho, Brasil,
2009.
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