Inês de Castro: da tragédia ao melodrama
«(…) No que se refere à
arte dramática quinhentista, em Portugal, ela manifesta as diversas tendências
do teatro europeu contemporâneo. Surgem as tragédias em vulgar, inspiradas na
mitologia ou na história clássicas, as tragédias novilatinas, que exprimem os
ideais religiosos, culturais e políticos da época, e adquirem, por vezes, um
tom de verdadeira intervenção (o tema do amor na tragédia humanista: amor
sagrado e amor profano, in Miscelânea
em honra do Prof. Américo da Costa Ramalho, Coimbra, INIC, 1992). Nelas
se integra a Ioannes princeps
tragoedia de Diogo Teive, verdadeiro treno à morte do Príncipe João, filho de João III e
único herdeiro do reino, composta em 1554
e considerada fonte da Castro
de António Ferreira. A estas últimas serviu de tema a história
pátria, contemporânea e medieval. Ferreira
foi muito feliz na escolha do tema, do mythos,
que, no dizer de Aristóteles, é como
que a alma da tragédia. Tal como Sófocles, na Antígona, Ferreira
dramatiza, na Castro, o
conflito entre o Amor e a Razão de Estado, temas que a literatura e o pensamento
da época privilegiavam. Mas a originalidade do nosso poeta quinhentista reside
essencialmente na forma como organizou e entreteceu a acção, no ritmo
expressivo dos diálogos, em que a retórica sentenciosa se combina com a
suavidade melódica, a tensão trágica com o lirismo elegíaco. Não lhe faltaram
modelos. Entre os clássicos, foi Eurípides, o último dos trágicos do drama
ático do século V, o primeiro a transportar para a cena a paixão amorosa e a
recorrer ao esquema agonístico da retórica, que lhe abria as portas ao debate psicológico,
num crescendo de motivos e emoções. Séneca imita Eurípides, em peças que por
vezes conservam o mesmo nome e em que o amor é tema dominante, e lhes confere a
exuberância oratória, própria da sensibilidade da sua época, que se sobrepõe à
contenção, rigor e hieratismo da tragédia grega.
No entanto, qualquer que
seja o padrão temático-estético adoptado, é significativo o número de tragédias
que, tal como a Castro, têm
por título nomes femininos e em que se problematiza, à maneira euripidiana, em
volta da mulher-presença, o amor em conflito com interesses e razões de
carácter político. Ferreira, num
anseio de ser original e imprimir à sua obra literária a marca da actualidade,
tenta criar o seu próprio estilo, apoiado na tradição clássica, nas recentes
experiências de teatro novo e na preceptística que se esboçava principalmente em
Itália (em finais do Quattrocento,
num ambiente dominado pelos textos da teorização medieval, em que a Epistula ad Pisones fora
assimilada às regras e preceitos da tradição retórica, vem à luz a Poética de Aristóteles.
Logo se estabeleceram semelhanças e se fizeram convergências interpretativas,
no sentido de conciliarem o pensamento estético de Horácio com o do Estagirita.
Várias edições, comentários e traduções das obras de Horácio e Aristóteles surgiram
nos finais do século XV e no decurso do século XVI. Contudo, o início do
aristotelismo científico marca-se pela publicação da primeira explicação
integral e pormenorizada da Poética,
da autoria de Francesco Robortello, em 1548).
Tem-se afirmado que o lirismo sobreleva na Castro
a uirtus trágica,
os melhores passos da Castro dão a medida de Ferreira como lírico: são as expansões de Pedro e Inês, os arroubos dos
Coros. É que, no século XVI, tudo é envolto em emoção.
A dimensão visual e
rítmica da palavra, a orquestração verbal, impõe-se em todo o género de poesia,
a que Petrarca empresta voz. É sobretudo com os Rerum Vulgarium Fragmenta, através de antíteses abstractas e
de uma sugestiva imagética da interioridade, que o poeta de Arezzo impõe
à literatura europeia um verdadeiro código poético, o petrarquismo, ou dá o tom
petrarquizante à expressão do amor cortesanesco. No entanto, podemos afirmar
que a própria expressão lírica e os seus recursos e ingredientes servem para
acentuar os contrastes luz / sombra, claro / escuro da alma humana, verdadeiro diapasão da essencialidade
dramática. O lirismo petrarquista, no seu jogo intelectivo, assente
numa estratégia da reduplicação do sujeito da enunciação em relação ao sujeito
do enunciado; na valorização das capacidades perceptivas, em que avulta a
prevalência da luz, do ver e do olhar, de inspiração plotino-ficiniana; na simplicidade
estilística, que vive do ritmo e da harmonia interna do verso, conseguida por
vezes por subtis alterações, na repetição de esquemas sintácticos e lexicais,
exprime admiravelmente os contrastes do sentimento amoroso, o debate passional».
In
Nair Nazaré Castro Soares, Inês de Castro, Da Tragédia ao Melodrama,
Universidade de Coimbra, As Artes de Prometeu, homenagem a Ana Paula
Quintela, Faculdade de Letras da
Universidade do Porto, 2009, ISBN 978-972-8932-42-8.
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