O Mito de Tristão
«(…) Ora se o quadro desaparece, essa paixão não deixa de subsistir. Ela
é sempre igualmente perigosa para a vida da sociedade. Tende sempre para
provocar, por parte da sociedade, uma ordenação equivalente. Donde a
permanência histórica, não já do mito sob a sua forma primitiva, mas da exigência mítica a que o Romance correspondia.
Alargando a nossa definição, passaremos a chamar mito a essa permanência de um tipo de relações e às reacções que
provoca. O mito de Tristão e Isolda
já não será só o Romance, mas o fenómeno que ele ilustra e cuja influência não
cessou de se prolongar até aos nossos dias. Paixão da natureza obscura,
dinamismo excitado pelo espírito, possibilidade pré-formada em busca de uma
pressão que o exalte, encanto, terror ou ideal: tal é o mito que nos atormenta.
Ter ele perdido a sua forma primitiva, eis precisamente o que o torna tão
perigoso. Os mitos caídos tornam-se venenosos como as verdades mortas de que
fala Nietzsche.
Actualidade do mito; razões da nossa análise
Não é preciso ter-se lido o Tristão
de Béroul ou o de Bédier nem ter ouvido a ópera de Wagner para se sofrer na
vida quotidiana o domínio nostálgico dum tal mito. Ele trai-se na maior parte dos nossos romances e filmes, no
seu êxito junto das massas, nas complacências que desperta no coração dos
burgueses, dos poetas, dos mal-casados, das costureiras que sonham com amores
miraculosos. O mito age sobretudo
onde a paixão é sonhada como um ideal, não temida como uma febre maligna; por
toda a parte onde a sua fatalidade é chamada, invocada, imaginada como uma bela
e desejável catástrofe e não como uma catástrofe. Vive da própria vida daqueles
que acreditam que o amor é um destino (era o filtro do romance) que
desaba sobre o homem, impotente e maravilhado, para o consumir num fogo puro; e
que é mais forte e mais verdadeiro do que a felicidade, a sociedade e a moral.
Vive da própria vida do romantismo em nós; é o grande mistério dessa religião
de que os poetas do século passado se fizeram sacerdotes e inspirados.
Dessa influência e da sua natureza mítica, a prova é de resto imediata.
O romance de Tristão é-nos sagrado na medida exacta em que se achar
que eu cometo um sacrilégio ao tentar
analisá-lo. Sem dúvida que essa censura se reveste agora de um sentido bem anódino,
se pensarmos que ela se traduzia, nas sociedades primitivas, não por essa
repugnância que eu prevejo, mas pela morte do culpado. O sagrado que aqui entra
em jogo não é mais que uma sobrevivência
obscura e deprimida. Ou simplesmente que os homens de hoje não são menos
débeis em suas paixões que nos seus
gestos de reprovação? À falta de inimigos declarados, onde estará a
coragem que aos escritores se reclama?
Será preciso que eles a exerçam contra
si próprios? E poder-se-á verdadeiramente travar batalha a não ser com o adversário que trazemos em nós?
Confesso que eu próprio senti despeito ao ver um dos comentadores da lenda de Tristão defini-la como uma epopeia do adultério. A fórmula é sem
dúvida exacta, se nos limitarmos a considerar os dados do Romance. Não deixa
por isso de parecer menos vexatória e prosaicamente
restrita. Poder-se-á manter que a falta moral é o verdadeiro assunto da lenda? O Tristão de Wagner, por exemplo,
não seria mais que uma ópera do adultério? E o adultério, por fim, não será mais que isso? Uma palavra feia? Uma ruptura de contrato? É também
isso; não é mais do que isso em demasiados casos; mas frequentemente é muito
mais do que isso: uma atmosfera trágica e apaixonada, para além do bem e do
mal, um belo drama ou um drama horrível... Enfim, é um drama, um romance. E romantismo vem de romance...
A primeira é que nós atingimos o ponto de desordem social em que o
imoralismo se revela mais extenuante que as morais antigas. O culto do
amor-paixão democratizou-se de tal
modo que perde as suas virtudes estéticas e o seu valor de tragédia espiritual.
Resta um confuso e difuso sofrimento, qualquer coisa de impuro e triste de que
não me parece que se perderá coisa alguma em profanar as causas falsamente
sagradas: essa literatura da paixão, essa publicidade que lhe fazem, essa voga de aspecto comercial do que foi um
segredo religioso... É preciso declararmo-nos contra tudo isso, mesmo que fosse
apenas para salvar o mito dos abusos da sua extrema vulgarização. E tanto pior
para o sacrilégio. A poesia tem outras hipóteses». In Denis de Rougemont. L’Amour et
l’Occident, Librarie Plon, 1938, O Amor e o Ocidente, Vega, Lisboa, 1956.
Cortesia de Vega/JDACT