sábado, 19 de abril de 2014

O Livro Negro do Cristianismo. Jacopo Fo. Sérgio Tomat. Laura Malucelli. «No século X, começam a nascer em toda a Europa grupos de fiéis que pregam e aplicam a comunidade do bem, a fraternidade, e recusam a autoridade eclesiástica. Combatendo esses movimentos, as hierarquias eclesiásticas e nobres…»

Cortesia de wikipedia

Lutas fratricidas
«(…) No ano de 476, o Império Romano do Ocidente, há tempos já corrompido e devastado pelas lutas de poder, deixa de existir até oficialmente. Os bárbaros zinhos, confiantes em seu valor em sua homogeneidade social, chegam em ondas, mas logo são arrebatados pela febre da traição e da desconfiança. Nenhum império resiste muito tempo. Mas entre as lutas religiosas e políticas, amplificadas pelas invasões bárbaras, pode acontecer que um rei traído por seus súbditos e abandonado pelos mercenários decorra aos camponeses, oferecendo a eles liberdade e a propriedade da terra, e obtendo em troca exércitos invencíveis. O envolvimento dos camponeses na política, a explosão do artesanato, das manufacturas, da cultura dos ofícios e da invenção de novas técnicas levam o povo a amadurecer uma ideia mais digna de si próprio e um senso de justiça mais profundo. Assim, por volta do ano mil, este novo modo de conceber e viver o mundo se funde ao que resta das ideias do cristianismo primitivo. Desenvolvem-se movimentos que unem a ideia do retorno ao cristianismo puro e a vontade de organizar uma sociedade sem rei, generais ou escravidão. Basicamente, a população dos fracos começa a se rebelar contra o poder sagrado e abençoado dos nobres patrões, inspirados pelo indispensável clero. Eles também descobrem que os poderosos, como guerreiros profissionais, não são muito valorosos: os artesãos e camponeses reunidos na comuna, armados de lanças e bem treinados, muitas vezes conseguem abatê-los como a fantoches.

Hereges
E já que os nobres não servem para nada, por que não se livrar deles? E para que servem os padres, que muitas vezes são bispos e condes ao mesmo tempo? Ninguém mais acredita na santidade deles, já que, sob as vistas de todos, cometem todo tipo de pecado. E assim nasce a ideia de que os sacramentos, se administrados por pessoas indignas, não têm nenhum valor. Ignorem o indigno exemplo deles, grita logo um teólogo sigam o que dizem os ministros de Deus, não o que eles fazem. No século X, começam a nascer em toda a Europa grupos de fiéis que pregam e aplicam a comunidade do bem, a fraternidade, e recusam a autoridade eclesiástica. Combatendo esses movimentos, as hierarquias eclesiásticas e nobres (que muitas vezes são a mesma coisa) se organizam para exterminar os habitantes de regiões inteiras, condenando os sobreviventes ao suplício público. No ápice dessa perseguição, muitas pessoas são torturadas e assassinadas de formas horrendas apenas por terem apoiado a tese de que Jesus e os apóstolos não possuíam riquezas ou bens materiais. O mero facto de ter uma Bíblia em casa já bastava para levantar as suspeitas de se ser um inimigo da Igreja.
Se essa Bíblia ainda fosse traduzida para o latim vulgar, ou seja, uma língua entendida pelo povo, e não tivesse autorização, a condenação por heresia era certa. Os cristãos comunitários queriam se inspirar no Evangelho, sem intermediários. E muitas, muitas vezes, pagaram por isso com a própria vida. Um martírio que enfraquece aquele dos primeiros cristãos sob o Império Romano. Contra os hereges, em dado momento, chegou a ser inventado um instrumento repreensivo de perfeição diabólica: a Inquisição (maldita). Os inquisidores eram, ao mesmo tempo, polícias, carcereiros, acusadores e juízes. Qualquer frase podia ser suficiente para acabar em suas garras: um boato, uma carta anónima, um comportamento ligeiramente diferente do normal. Até ser devoto demais era considerado comportamento duvidoso. O suspeito era considerado culpado se não conseguisse provar a própria inocência. E quem testemunhava em favor de um suposto herege podia, por sua vez, tornar-se suspeito e sofrer um processo. Na verdade, as perseguições aos hereges começam logo depois da criação da Igreja de Estado e terminam no século XVIII, com as últimas ondas de caça às bruxas. As histórias dos processos e das perseguições realizadas pela organização eclesiástica e pelo Santo Tribunal (maldito) são tão absurdas e contraditórias que não nos permitem nenhuma análise verossímil. É impossível fazer um balanço confiável dessas guerras e perseguições, e decerto milhões de pessoas foram assassinadas em mais de mil anos de crueldade desumana.

Os exércitos cristãos
E, como se não bastasse, foram os papas que ordenaram as Cruzadas e, posteriormente, a colonização das terras novas e os massacres que se sucederam. Mas vejamos: Primeiro, foram as tentativas de invadir a Palestina, o Líbano e a Síria, com o pretexto de libertar o Santo Sepulcro. Em Storici arabi alle crociate, Gabrieli reúne os testemunhos de vários cronistas medievais no Médio Oriente. Por meio dessas declarações, pudemos saber que, até depois da metade do século XII, ou seja, antes do começo das invasões dos franco-cruzados, milhares de cristãos visitavam livremente a Palestina e todos os lugares onde Jesus vivera e pregara. As Cruzadas foram um projecto criminoso em todos os aspectos, e, mal nos questionamos sobre a sucessão de factos que levaram à Terra Santa turbas desenfreadas aos gritos de Assim quer Deus!, finalmente vemos aflorar a real motivação da campanha que levou São Francisco a tal indignação a ponto de exclamar: … vim converter os infiéis e descobri que os que precisam de fé e noção de piedade não são os guerreiros muçulmanos, mas os soldados de Cristo e, antes de mais nada, os bispos que os conduzem! Além do mais, os exércitos de Deus talvez tenham morto mais cristãos do que infiéis». In Jacopo Fo, Sérgio Tomat, Laura Malucelli, Il Libro nero del cristianesimo, O Livro Negro do Cristianismo, Itália, 2000, 2005, Ediouro, Rio de Janeiro, Brasil, 2007, ISBN 85-000-1964-6.

Cortesia de Ediouro/JDACT