«Que a minha língua era ponteira como a faca que trazia à cinta, murmuravam
as bocas do mundo mal consideradas. Cantigas, ó Rosa! A faquinha, assim Deus me
salve, tinha uma função e não mais, cortar a côdea, o queijo, a febra do
presunto, quando andava de jornada. Algumas vezes, também, arremediava-me a
consertar os atafais do macho se o Demo queria que estoirassem. Quando, por grande
acaso, se apartava desta pacífica missão, é que a minha vida corria perigo e trazer
eu a peito defendê-la, pois se Deus ma deu, tantas vezes o tenho dito , a Deus
tenho obrigação de a restituir, mas só quando ele for servido e mais ninguém.
Quanto à língua, cortaram-me a trave ao nascer; mas nunca levantei falsos
testemunhos, nem acoimei de curta mulher honrada, nem de cornel sujeito que não
tivesse testa para marrar. Guar-te de homem que não fala e de cão que não
ladra, por isso eu sempre falei, falo e falarei franco até morrer, pois se nós
o temos no pensamento, acautelá-lo da boca só por ronha ou cobardia.
Mas onde eu punha epitáfio, caía mais certo que os nabos no advento.
Onde cortava nos podres é que
os podres buliam com Deus e com os homens. Às vezes valia mais que lancetar um
leicenço. Valia! Eu lhes conto um
passo assucedido, pelo qual, se o Pai do céu se não esqueceu de o apontar no
livro da glória e a remissão é certa, do pecado mais taludo estou quite, ainda
que me não morda nenhum de monta. Pois oiçam, meus fidalgos: … um entrudo, quinta-feira
mesmo das comadres, à boca da noite, o Bisagra desafiou-me na venda do Zé Pinto
para jogar uma partida de chincalhão. Vossorias sabem: o Bisagra era senhor
duma destas galhaduras, mais formosas, compridas e retorcidas como não há
memória que andasse armada a testa dum serrano. Mais abundante nem paliteiro
com os palitos, e assim falada nem a porca de Murça. Tão coitadinho, que seria
caridade dizer-lhe ao passar um portal baixa que marras! A mulher era fêmea de
alto lá com ela, sempre mais frescal que alface, requestada de fidalgo e de
padre-cura.
Pegámos das cartas e o ladrão com a felícia toda, o sortalhão que dizem
próprio daqueles a quem sobra o que falta às cabras mochas! Na cova da mão,
sempre o cinco de oiros, a espadilha, o cinco de paus, levantou-me em catréfia
seguida quatro quartilhos e um bolo. Paguei, mas bufei, que à mandinga da sua
condição e não a jeito nem à sorte honesta atribuí eu, e comigo todos quantos
ali estavam, aquele desaforo a ganhar. E, maneira de desforço, fui chasqueando
nesta voz pausada que Deus me deu, pela qual alguns mequetrefes, nas minhas
costas, me comparam à bezerrinha mansa que em todas as vacas mama: - Este
Manuel é o que se chama um regalão. Bem comido, bem bebido, mais fresco nem o
nosso abade! Pois olhem, é do mesmo ano que eu, mas ninguém o há-de dizer Os
trabalhinhos estragam mais que o tempo! Sempre a arrotar pescada, a este
felizardo só falta cartola e bengala. As fêmeas é que dão cabo dele. Raios o
partam, com uma mulher daquelas, tudo o que há de mais liró, e não tem nojo de ir
à Preciosa! Não te basta a Claudina,
maganão? Ah Cristo, eu, se pilhasse uma mulher assim, estava-me ninando
para as mais! Também estou velho, lá na Brízida dou um beijo quando dou...
O Bisagra ria, muito ancho da canada que me bebera e das palavras que
eu proferia, e lhe sabiam tão bem como o vinho, e a roda estava maluca de
alegria com o entremez e o ver-me com cara de asno, que é sempre a cara do
pagante. Mas vai senão quando, o Bisagra saiu fora satisfazer as necessidades
ou a revessar a vinhaça, e eu virei de folha: - Cem cães o comam para
chavelhudo! Vai à bostiqueira da Preciosa porque a Claudina lhe diz tó-ruça;
guarda-se para os outros, para os figuros, para quem ela quer. Cornambana do
inferno! Se fosse a mim, ia-me a ela, e, ó menina, ou és minha mulher a valer
ou te pico aqui a barriga como à cebola para o refogado...» In
Aquilino Ribeiro, O Malhadinhas, Mina de Diamantes, Assembleia da República,
2007, Bertrand Editora, Lisboa, 2007, ISBN 978-972-25-1631-0.
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