Os mitos históricos são uma forma de consciência fantasmagórica com
que um povo define a sua posição e a sua vontade na história do mundo.
Oriente e mitologia dos
Descobrimentos. De João de Barros a Bocage
O Renascimento. O Humanismo europeu e o Oriente
«(…) Dir-se-ia, examinando
estes factores, verdadeiramente elementares, sem dúvida, mas nos quais talvez
não se reflicta com suficiente atenção, que do Oriente dependeu em grande parte
o que fez do Ocidente, e mais propriamente da Europa, esse conjunto de culturas
distintas apostadas numa sempre insatisfeita curiosidade por tudo o que diz
respeito ao homem em si, o homem como possibilidade infinita, separado dos
deuses e dos sistemas religiosos instituídos. Por outro lado, paralelamente a
estes factores elementares, há aqueles que se relacionam com o desenvolvimento
de uma certa burguesia mercantil, desenvolvimento que passa necessariamente
pelo Oriente. E aqui intervém o papel fundamental desempenhado pela Itália
renascentista na relação Oriente-Ocidente.
O historiador francês Lefebvre,
numa obra básica de introdução geral à moderna historiografia, La naissance
de l’historiographie moderne (Paris, 1971), releva justamente essa relação Oriente-Ocidente
a partir do Mediterrâneo e sobretudo da Itália: Foram as relações entre
as civilizações através do Mediterrâneo que, na minha opinião, estiveram na
origem de progressos essenciais e do esforço do Ocidente. […] Ora,
a primeira parcela do Ocidente a despertar foi a Itália: aqui foi relevante a
posição geográfica. Situada no meio do Mediterrâneo, a península encontrava-se,
entre todo o Ocidente, na posição mais favorável para entrar em contacto com
Bizâncio e com os Muçulmanos. […] Esta situação teve como consequências
o conhecimento das civilizações bizantina e muçulmana e, dentro de pouco tempo,
uma notável superioridade económica.
Um outro historiador,
que é um clássico alemão da investigação histórica sobre o período do
Renascimento italiano, Burckhardt, faz notar que muito do que foi a difusão do
humanismo renascentista na Europa a partir da Itália se deve à fascinação
por um Oriente longínquo que, paralelamente à herança greco-latina, libertava o
homem do peso da teologia medieval. Por um lado, havia o gosto da viagem: Lorsque les
Italiens se furent établis à demeure dans tous les porte orientaux de la
Méditerranée, les plus entreprenants d’entre eux prirent naturellement le goût
des grands voyages qui entraînaient la race mahométane. (…) Quelquesuns, comme
les Polo de Venise, furent emportés par le tourbillon de la vie mongole et
arrivèrent ainsi jusqu’aux marches du trône du Grand Khan. Por
outro lado, havia o culto de
uma imaginação que sentia frequentemente o apelo do exótico. Essa imaginação,
que, para citar ainda Burckhardt, define o essencial do espírito renascentista
em Itália, leva inclusivamente a uma certa tolerância perante a religião islâmica:
[…] le contact fréquent et intime avec des Byzantins et des mahométans avait
de tout temps maintenu une tolérance, une neutralité devant laquelle
s’effaçait jusqu’à un certain point l’idée ethnographique d’une chrétienté
d’Occident privilégiée.
Assim, se o humanismo renascentista europeu surge e se desenvolveu a
partir dos grandes modelos greco-latinos, nem por isso o Oriente deixou de
acompanhar essa revitalização da cultura clássica a nível da própria vida
quotidiana». In Álvaro Manuel Machado, O Mito do Oriente na Literatura Portuguesa,
Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, Instituto Camões, Biblioteca Breve,
Conselho da Europa, Lisboa, 1983.
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