segunda-feira, 28 de abril de 2014

O Tempo e os Homens. Colecção Universitária. António Borges Coelho. «A existência de filósofos malditos é tão velha como a história do pensamento ocidental. E qualquer artífice sabe que quanto mais variados e complexos forem os instrumentos, maiores possibilidades se abrem à acção»

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Manipulador do tempo. Tempo e Memória
História. Histórias
«(…) No seu trabalho diário, o historiador opera uma gama variada de produtos: colectâneas documentais como os Portugaliae Monumenta Historica de Alexandre Herculano ou os Monumenta Henricina de Dias Dinis; Histórias Universal, de Portugal, da França, de Lisboa; Histórias regionais ou locais; monografias sobre História das Ideias, História Económica, Social, Mental, Arte, Quotidiano, Biografias, etc., etc. Noutras alturas produz discursos sob e sobre o fogo vivo dos acontecimentos. Estes relatos-testemunhos, necessários, por vezes preciosos, alcandoram-se frequentemente ao discurso mais perene da História. Noutro plano, independentemente da originalidade, os produtos acabados revestem linguagens diferenciadas: a do cerzir de acontecimentos e de ideias; a metalinguagem que conceptualiza os dados empíricos; a metalinguagem que navega sobre conceitos mas deixa à vista os fundamentos empíricos; a metalinguagem… Por outro lado, certos produtos voltam-se para a análise, a pesquisa e o escalpelizar de um problema ou tema limitado; outros ousam as grandes sínteses. O artesão manipulador do tempo marca o produto com a sua mente e a sua mão mas é extremamente dependente; dependente das informações, dependente do trabalho dos homens e mulheres que organizam a informação conservada nos arquivos, bibliotecas e museus, dependente das ideias e da carpintaria dos autores que o antecederam, dependente de toda a sociedade no pensar, no milagre diário de existir. E é no plano final, no movimento das palavras até se fixarem nestes caracteres e não noutros, que as marcas do artesão identificam e valorizam o produto genuíno.

Textos e Sociedade no Garbe Al-Andaluz
Tanto a verdade histórica como o mito se incorporam nas representações que dão sentido aos passos que agora mesmo renovamos. Os mitos captam o real profundo mas tem sido com o pensamento lógico que a Humanidade vem aumentando o conhecer e o poder, desenvolvendo e ameaçando a própria vida na Terra. No campo historiográfico, práticas de diferentes escolas e sistemas, confundindo o real e o lógico, coisificando os modelos, anulando a indeterminação do real, indeterminação acrescida nas sociedades humanas pelo factor a que os teólogos e os filósofos chamaram livre-arbítrio, têm levado muitos autores a refugiarem-se na procura necessária e sempre incompleta de informações novas, esquecendo que conhecer é relacionar. Há mesmo quem minimize e desconfie da compreensão em História e, a pretexto de perigo ideológico, recuse, afinal por preconceito; ideológicos, ferramentas conceptuais e expulse do território da teoria contributos de autores considerados indesejáveis.
A existência de filósofos malditos é tão velha como a história do pensamento ocidental. E qualquer artífice sabe que quanto mais variados e complexos forem os instrumentos, maiores possibilidades se abrem à acção. Necessário é dominar bem as ferramentas até para as rejeitar e afinar e saber quando, onde e como manejá-1as. Hoje insistem em todos os tons que as ideologias morreram, tocam-se as trombetas do Juízo Final da História como se fosse possível viver sem representações do mundo e sem conflitos, isto precisamente num tempo em que se reacendem na própria Europa velhíssimas guerras de bandeira religiosa que há muito se julgavam desaparecidas. Ao constante movimento e transformação do mundo, a razão responde imobilizando na ideia o que se move. Daí a necessidade de rectificação constante, daí a urgência de encontrar novas relações e mecanismos lógicos que envolvam não só a prova como até a ilusão do movimento. Por mais asséptica que seja a nossa postura e linguagem, por mais que congelemos a objectividade e expulsemos e anatemizemos as ideologias, o tempo social, económico, cultural e político concreto marca a actividade do historiador e do arqueólogo. E é bem um sinal de tristes tempos, esta necessidade de sublinhar o óbvio, de reafirmar o sobejamente verificado, demonstrado». In António Borges Coelho, O Tempo e os Homens, Questionar a História III, Editorial Caminho, Colecção Universitária, Lisboa, 1996, ISBN 972-21-1076-4.

Cortesia Caminho/JDACT