Manipulador do tempo. Tempo e Memória
História. Histórias
«(…) No seu trabalho diário, o historiador opera uma gama variada de
produtos: colectâneas documentais como os Portugaliae Monumenta Historica de Alexandre
Herculano ou os Monumenta Henricina de Dias Dinis; Histórias Universal,
de Portugal, da França, de Lisboa; Histórias regionais ou locais; monografias
sobre História das Ideias, História Económica, Social, Mental, Arte,
Quotidiano, Biografias, etc., etc. Noutras alturas produz discursos sob e sobre
o fogo vivo dos acontecimentos. Estes relatos-testemunhos, necessários, por
vezes preciosos, alcandoram-se frequentemente ao discurso mais perene da
História. Noutro plano, independentemente da originalidade, os produtos
acabados revestem linguagens diferenciadas: a do cerzir de acontecimentos e
de ideias; a metalinguagem que conceptualiza os dados empíricos; a metalinguagem que
navega sobre conceitos mas deixa à vista os fundamentos empíricos; a metalinguagem…
Por outro lado, certos produtos voltam-se para a análise, a pesquisa e o
escalpelizar de um problema ou tema limitado; outros ousam as grandes sínteses.
O artesão manipulador do tempo marca o produto com a sua mente e a sua mão mas
é extremamente dependente; dependente das informações, dependente do trabalho
dos homens e mulheres que organizam a informação conservada nos arquivos,
bibliotecas e museus, dependente das ideias e da carpintaria dos autores que o
antecederam, dependente de toda a sociedade no pensar, no milagre diário de
existir. E é no plano final, no movimento das palavras até se fixarem nestes
caracteres e não noutros, que as marcas do artesão identificam e valorizam o
produto genuíno.
Textos e Sociedade no Garbe Al-Andaluz
Tanto a verdade histórica como o mito se incorporam nas representações
que dão sentido aos passos que agora mesmo renovamos. Os mitos captam o real
profundo mas tem sido com o pensamento lógico que a Humanidade vem aumentando o
conhecer e o poder, desenvolvendo e ameaçando a própria vida na Terra. No campo
historiográfico, práticas de diferentes escolas e sistemas, confundindo o real
e o lógico, coisificando os modelos, anulando a indeterminação do real,
indeterminação acrescida nas sociedades humanas pelo factor a que os teólogos e
os filósofos chamaram livre-arbítrio, têm levado muitos autores a refugiarem-se
na procura necessária e sempre incompleta de informações novas, esquecendo que
conhecer é relacionar. Há mesmo quem minimize e desconfie da compreensão em
História e, a pretexto de perigo ideológico, recuse, afinal por preconceito;
ideológicos, ferramentas conceptuais e expulse do território da teoria
contributos de autores considerados indesejáveis.
A existência de filósofos malditos é tão velha como a história do
pensamento ocidental. E qualquer artífice sabe que quanto mais variados
e complexos forem os instrumentos, maiores possibilidades se abrem à acção.
Necessário é dominar bem as ferramentas até para as rejeitar e afinar e saber
quando, onde e como manejá-1as. Hoje insistem em todos os tons que as
ideologias morreram, tocam-se as trombetas do Juízo Final da História
como se fosse possível viver sem representações do mundo e sem conflitos, isto precisamente
num tempo em que se reacendem na própria Europa velhíssimas guerras de bandeira
religiosa que há muito se julgavam desaparecidas. Ao constante movimento e
transformação do mundo, a razão responde imobilizando na ideia o que se move.
Daí a necessidade de rectificação constante, daí a urgência de encontrar novas
relações e mecanismos lógicos que envolvam não só a prova como até a ilusão do
movimento. Por mais asséptica que seja a nossa postura e linguagem, por mais
que congelemos a objectividade e expulsemos e anatemizemos as ideologias, o
tempo social, económico, cultural e político concreto marca a actividade do
historiador e do arqueólogo. E é bem um sinal de tristes tempos, esta
necessidade de sublinhar o óbvio, de reafirmar o sobejamente verificado,
demonstrado». In António Borges Coelho, O Tempo e os Homens, Questionar a História
III, Editorial Caminho, Colecção Universitária, Lisboa, 1996, ISBN
972-21-1076-4.
Cortesia Caminho/JDACT