A Malograda Embaixada de Tomé Pires a Pequim
«(…) Tal como o próprio Cristóvão Vieira reconhece, des que a terra da China hé terra, o
rígido protocolo chinês não permitia que o imperador se avistasse com estrangeiros
(Cartas). Por isso mesmo, os
documentos que relatam o encontro entre Tomé Pires e Zhengde em
Nanquim têm causado alguma perplexidade, pois apresentam uma versão dos factos totalmente
em desacordo com os tradicionais hábitos diplomáticos chineses. Se aceitarmos o
testemunho dos documentos citados, e não existe qualquer razão para não o
fazermos, apenas duas explicações são possíveis. Ou Tomé Pires e os seus
companheiros se avistaram com qualquer alto funcionário chinês, a quem
confundiram com o imperador, e valerá a pena lembrar que Gaspar Correia
menciona, a determinado passo das suas crónicas, a morte do Rey da China que folgou com nosso embaixador,
ou Zhengde, quebrando todos os protocolos, se encontrou repetidamente com os
estrangeiros. O temperamento independente e rebelde do imperador, que se
manifestou em muitas outras circunstâncias durante o seu reinado, contribui
para dar algum crédito a esta última alternativa. De qualquer modo, o soberano
chinês ordenou que a embaixada seguisse para Pequim, onde seria formalmente
recebida, pelo que os portugueses continuaram viagem em direcção a norte,
seguindo pela rede de canais interiores, atingindo a capital imperial em data
incerta, talvez em finais de 1520. O
imperador chinês partira de Nanquim na mesma altura que a embaixada, mas
detivera-se numa pequena cidade dos arredores de Pequim, onde assistiu à
execução do príncipe revoltoso: … esteve
julgando hum seu parente que se alevantou contra elle, e o mandou queimar depois
de emforcado (Cartas).
Durante a sua estada nesta pequena localidade, Zhengde recebeu vários memorandos
sobre os portugueses, que são resumidos por Cristóvão Vieira. O
companheiro do embaixador não explicita o modo como obteve estas informações,
mas é provável que, durante encontros posteriormente mantidos com funcionários
chineses, algo transpirasse sobre o conteúdo dos relatórios remetidos ao Filho
do Céu. Um dos memorandos tinha sido enviado de Cantão e dizia respeito ao
comportamento abusivo adoptado pelas gentes
franges da expedição de Simão Andrade. Os funcionários cantonenses
descreviam todas as arbitrariedades cometidas pelos portugueses, desde a recusa
de pagarem direitos alfandegários até à construção não autorizada de uma
fortaleza, passando pela agressão a um mandarim e pelo rapto de crianças (Cartas). Como conclusão, o
relatório oriundo da metrópole meridional sugeria ao imperador que não
recebesse a missão chefiada por Tomé Pires, pois os nossos, sob disfarce
de embaixada legítima, vinham apenas espiar
as terras com titulo de mercadores, para depois as ocuparem (Barros). Um outro memorial de
idêntico teor fora enviado de Pequim ao imperador, reforçando as acusações
contra os estrangeiros. Um terceiro memorando que chegara às mãos de Zhengde
tinha sido despachado pelo antigo sultão de Malaca, por intermédio do seu
embaixador Tuan Mahamed, que chegara a Nanquim pouco antes de Tomé Pires.
Alegando a sua condição formal de tributário do Celeste Império, o
soberano malaio solicitava ajuda contra a ocupação portuguesa do seu estado: Os franges, ladrões com coração grande,
vierão a Malaca com muita gente e tomarão a terra e a destroirão, e matarão
muita gente e a roubarão, e outra cativarão. Ao mesmo tempo, tentava lançar
o descrédito sobre a embaixada lusitana, alegando que Tomé Pires falsamente era vindo a terra da China pera
enganar e que os portugueses eram ladrões
encapotados, que vinham tentar ocupar o território chinês, tal como
anteriormente tinham conquistado Malaca (Cartas).O
emissário do antigo sultão não conseguira ser recebido pelo soberano chinês em
Nanquim, pelo que partira também para a capital.
Ao que parece, o imperador Ming, depois de ser
devidamente informado sobre as actividades dos portugueses, adoptou uma posição
conciliadora, atribuindo os conflitos surgidos em Cantão, com a frota de Simão
Andrade, ao facto de os estrangeiros desconhecerem os costumes chineses: … esta gente não sabem nossos custumes, manso
os irão sabendo (Cartas).
Mas, como se verificaria mais tarde, nem todos os altos mandarins pequinenses
partilhavam esta opinião. O funcionalismo chinês regia-se por uma rígida ética
confuciana, que colocava em primeiro lugar a estabilidade governativa e
administrativa. Qualquer ruptura da ordem estabelecida era, portanto, encarada
pelos mandarins da capital com as maiores reservas. A chegada dos portugueses a
Cantão tinha introduzido um elemento de perturbação no tradicional sistema de
relações externas do Celeste Império. Por isso, a embaixada de Tomé Pires
era hostilizada por muitos funcionários imperiais da capital, mais preocupados
com a manutenção da ordem estabelecida do que com o eventual benefício
económico que os estrangeiros trariam às províncias meridionais». In Rui
Manuel Loureiro, A Malograda Embaixada de Tomé Pires a Pequim, Portugal e a
China, Conferências, Séculos XVI-XIX, Coordenação de Jorge Santos Alves, Fundação
Oriente, Lisboa, 1997-1998, ISBN 972-9440-92-1.
Em memória do Fernando José. Que estejas
em paz.
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