O romance histórico no primeiro romantismo português
Herculano
«(…) Respondendo a
críticas que o increpavam por haver alterado a verdade histórica nas suas
crónicas-romances publicadas no Panorama, Herculano respondia nas colunas da mesma revista: Nós procuramos desentranhar do
esquecimento a poesia nacional e popular dos nossos maiores: trabalhamos por
ser historiadores da vida íntima de uma grande e nobre, e generosa nação, que
houve no mundo, chamada Nação Portuguesa. Termina a sua resposta: Alargámo-nos nesta nota, porque alguém
nos increpou de havermos alterado a história em várias crónicas-romances que
temos publicado, principalmente no Mestre Gil e na Abóbada; era-nos lícito fazê-lo;
mas cremos que não o fizemos em cousa essencial; nisto demos crónica, no
vestuário com que o enfeitámos demos romance. Não confundamos ideias; o extra-histórico não é contra-histórico.
Vivem acaso naquelas duas… novelas, se quiserem,
as épocas a que aludem? Não teremos tanto orgulho, que sem receio, o afirmemos.
Mas se com efeito aparece, em uma o modo
de existir português, do tempo de João II, noutro o crer e sentir robustíssimo do reinado
de João I, diremos sem hesitar que saímos com o nosso intento. Preso por mil,
preso por mil e quinhentos, diz o velho adágio. Vá aqui mais uma humilde
opinião nossa. Parece-nos que nesta cousa chamada hoje romance-histórico há mais histórias do que nos graves
e inteiriçados escritos dos historiadores. Nesta breve nota encontra-se
estabelecido o cânone do romance histórico tal como o concebeu e praticou Herculano:
- Revivescência da poesia nacional e popular;
- Representação, com base erudita, da vida íntima das épocas passadas;
- Ressurreição estética da vida social da época histórica em que decorre a acção novelística, expressando o modo de sentir e existir do povo.
Este cânone é, mutatis
mutandis, aquele que se pode deduzir da leitura dos romances de Scott.
Mas a lição que Herculano recebeu do
grande novelista escocês não foi apenas a que assim se pode esquematizar.
Também nas obras de Scott apreendeu Herculano o princípio da não apresentar as
figuras com existência histórica como personagens centrais do enredo. O romance
histórico não comporta heróis
que tivessem tido existência histórica, com destaque singular, sob pena de
impossibilitar a representação social múltipla e vária que necessariamente
há-de compor o quadro histórico em que se insere a acção imaginada. Não é
possível saber se o interesse de Herculano
pelos estudos históricos e sua consagração a eles, proveio da leitura
apaixonada que fez dos romances de Scott. Houve já quem conjecturasse, não
me recordo quem, que a vocação de Herculano
para os estudos de natureza histórica se revelara no tempo em que ele
frequentara a aula de diplomática, antecedentemente ao exílio.
É muito verosímil; mas
se não foi Scott quem nele despertou o interesse por tais estudos, foi ele certamente
quem lhe revelou o que eles têm de sedutor. Estava-se então numa época em que o
interesse pela História constituía não só o fundo da cultura mas também um dos
mais vastos e ricos recursos ao divertimento dos espíritos. Em quase todas as
épocas da história se verifica, em cada uma delas, a criação da sua utopia própria, geralmente
prospectiva. A utopia romântica
teve a particularidade de se projectar sobre o passado, de ser uma utopia retrospectiva. Toda a utopia se cria como uma
compensação das realidades presentes; os românticos, porém, antes de a
visionarem no futuro, fizeram-na transitar pelo passado, e esse foi o toque de genialidade
de Scott e a verdadeira causa da quase universal aceitação da sua obra. Augustin
Thierry, na sexta das suas Lettres sur l’Histoire de France escreve: A leitura dos romances de Scott fez voltar
muitas imaginações para a Idade Média, a qual, anteriormente, por menosprezo,
era desconhecida; e se presentemente se está realizando uma revolução na
maneira de ler e escrever a história, isso se deve principalmente à leitura
dessas composições aparentemente frívolas.
Herculano parece ter considerado a História e a novela histórica
como dois elementos de actuação convergente. Mais: no entusiasmo pelo romance histórico,
na admiração pela obra de Scott, modelo e desesperação de todos os
romancistas, equiparava a História ao ficcionismo da história ao escrever
no Panorama: Novela ou
História qual destas duas
causas é a mais verdadeira? Nenhuma, se o afirmarmos absolutamente de
qualquer delas». In Castelo Branco Chaves, O Romance Histórico no Romantismo Português,
Instituto de Cultura Português, Centro Virtual Camões, Instituto Camões, oficinas
Gráficas da Livraria Bertrand, 1980.
Cortesia do Instituto
Camões/JDACT