«(…) Entenda-se que a semi-despersonalização descrita não passou na
vida de Fernando Pessoa de momentos de exaustão mental. Claro que
semelhantes crises despersonalizantes não são compatíveis com o fenómeno
heteronímico, porquanto este, contrariamente, é personificante. E notemos que
as crises mais simples de dissociação a dois são as propícias à criação de
heterónimos. São esses que propiciam transmutações de carácter, que é o
observado nas duplicidades embora variáveis. A circunstância leva o poeta a
escrever:
Se penso ou sinto, ignoro
quem é que pensa ou sente,
sou somente o lugar
onde se sente ou pensa
tenho mais almas que uma
há mais eus do que eu mesmo.
(Odes de Ricardo Reis)
No Livro do Desassossego (doravante, LD) adianta: Na vasta colónia do nosso ser há gente de
muitas espécies, pensando e sentindo diferentemente. Aqui está, mais
uma vez, incluída a explicação originária de muitos heterónimos de Pessoa. E continuando a descrever o seu
agitado estado psíquico e a sua heteronímia: Criei em mim várias personalidades. Crio personalidades
constantemente… Para criar, destruí-me; tanto me exteriorizei dentro de mim, que
dentro de mim não existo senão exteriormente. Sou a cena viva onde passam
vários actores representando várias peças (LD). Destruí-me diz, porque
realmente o espírito se destruiu na sua integridade e, destruída esta, o que
fica da personalidade própria? O nosso doente responde, porque ele, por hábito,
responde a tudo: Numa grande dispersão
unificada, ubiquito-me neles e eu creio e sou a cada momento da conversa, uma
multidão de seres, conscientes e inconscientes, analisados e analíticos, que se
reúnem em leque aberto. A seguinte quadra ajuda a entrar no íntimo da
sua alma perplexa:
Chegado aqui, onde estou, conheço
que sou diverso no que informe
estou.
No meu próprio caminho me
atravesso,
não conheço quem fui no que hoje
sou.
(Poesia II)
Depois não admira que diga: Nem
sempre sou igual ao que digo e escrevo (Poemas de Alberto Caeiro).
… e que repete no LD: … personalidade …
eu feliz ou infelizmente, não tenho nenhuma. Do que sou numa hora, na hora
seguinte me separo; do que fui num dia no dia seguinte me esqueci. Nas Odes de Ricardo Reis em Apontamentos Íntimos,
repisa: … Não sei quem sou, que alma
tenho. Quando falo com sinceridade não sei com que sinceridade falo. Sou variamente
outro do que um eu que não sei se existe (se é esses outros). Sinto crenças que
não tenho. Enlevam-me ânsias que repudio. A minha perpétua atenção sobre mim
perpetuamente me aponta traições de alma a um carácter que talvez eu não tenha,
nem ela julga que eu tenho. Sinto-me múltiplo. Sou como um quadro com inúmeros
espelhos fantásticos que torcem para reflexões falsas. Uma única anterior
realidade que não está em nenhum e está em todos (Odes de Ricardo Reis). Estamos
perto, bem se vê, de uma dissociação mental a raiar a alienação completa. Mas (o
que é pior; ou melhor), Pessoa
conhece o estado complicado e insanável que o tortura e o desorienta». In
Mário Saraiva, A Heteronímia de Pessoa, Brotéria Cultura e Informação, volume
138, 1994.
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