Tudo começa na Babilónia
O amor-sentimento
«(…) Quantos outros poemas e canções de amor análogos bem que todos
eles com o mesmo sentido foram escritos e dados a conhecer! Mesmo que a sorte
não nos tenha ajudado a conservá-los até aos nossos dias ou que os arqueólogos
não os tenham ainda exumado, temos provas da sua existência através de um catálogo
do fim do II milénio antes da nossa era, que reúne pelo seu título (ou melhor, pelas suas primeiras
palavras) cerca de quatrocentos, dos quais nos restam quase um quarto. Como
estas referências são por si só tão eloquentes, eis algumas que ajudam a compor
um belíssimo quadro dos sentimentos amorosos:
Vai-te, sono! Quero apertar nos
braços o meu querido!
Quando me falas, alivias-me
imenso o coração!
Ah, como te piscaria o olho
direito...
Eis-me apaixonada pelos teus
encantos!
À noite, não cerrei os olhos: /
Sim, estive desperta toda a
noite, meu querido!
Oh, felicidade! O dia só me
trouxe boas notícias!
Uma, inferior a mim, pensou que
podia suplantar-me!...
Por esta noite! Por este
entardecer!
Como é encantadora! Como é bela!
Ela procura o belo Jardim do
Prazer, que tu lhe vais dar!
Pois és tu, meu amado, quem
prefere os meus encantos!
Ó, minha pomba! Minha rola! Gemes
como quem se
lamenta!
É ele o jardineiro do Jardim do
Amor!
O coração desta donzela incita-a
ao divertimento!
Desde que dormi agarrada ao meu
bem-amado!...
A estes cantos e canções de ternura, de alegria e de paixão, caracteristicos
dos jovens e das donzelas na fase dos namoricos e dos amores puros, o catálogo
acrescenta outros que introduzem na poesia amorosa uma pincelada de devoção:
Regozija-te, Nossa Senhora! Grita
de alegria!
És a mais Sábia de entre as
sábias: tu que velas pelos
homens!
A mais temível de entre os deuses,
sou eu!
Quero cantar bem alto ao Rei
Divino, ao Rei
Omnipotente!
Quem poderia ser a minha Rainha,
senão tu, Ishtar?...
A verdade é que a maior parte dos poemas e canções de amor que chegaram
até nós giram à volta da deusa, tida ao mesmo tempo como Protectora e como
Modelo sobrenatural do amor livre: Inanna
/ Ishtar.
Deixa-me! Tenho de voltar para
casa!
Representados à imagem dos homens, os deuses tinham, igualmente, uma
esposa, e até as suas concubinas; constituíam família, tinham filhos. Neste
plano, tudo se passava sem história, não se conhecendo nem mitos nem lendas que,
como entre os Gregos, reflictam as discussões e os dissabores conjugais entre
divindades. Certas solenidades, as mais invocadas no decurso do I milénio antes
da nossa era, celebravam as suas bodas em redor das suas próprias estátuas de
culto: depois de banhados, perfumados e esplendidamente vestidos, eram
transportados com grande pompa para uma das capelas do templo, a que se chamava
quarto nupcial. Passavam aí
alguns dias, lado a lado, assim se considerando que era consumada a união,
comemorada com banquetes e festejos e com todo o povo à sua volta.
Mas os deuses praticavam também o amor livre. Foi sobretudo a personalidade excepcional de Inanna
/ Ishtar, totalmente independente, sem o menor vínculo conjugal ou maternal,
entregue às suas fantasias e paixões, quem inspirou grande número de narrativas
e canções. A ela eram atribuídas muitas aventuras, mas aquela que deixou a mais
viva recordação e da qual nos resta ainda uma documentação mitológica e lírica
impressionante, foi a primeira, a do seu amor da juventude por Dumuzi
(em sumério) / Tamuz (em acádico), sem dúvida um soberano muito antigo,
tornado herói no princípio dos tempos e depois elevado à condição de deus. Ele
era pastor e Inanna, segundo se contava, tinha hesitado, a princípio, entre
ele e Enkimdu, o deus agricultor, eco provável de uma determinada situação
económica e social que, de facto, nos escapa, tão recuada está no tempo, neste país
em que terão persistido por muito tempo as rivalidades entre agricultores e
criadores de gado, agentes principais da produção dos recursos locais. Pois
bem, ela escolheu o pastor, como nos indica uma espécie de dueto com o coro,
escrito em sumério:
Inanna; - E quanto a mim:
minha vulva, minha colina carnuda, / Quem, então, me abre sulcos? / Minha
vulva, a Rainha, minha terra tão húmida, / Quem te passará com a charrua?
Coro: - Ó Senhora
Soberana, o rei é que te sulcará! / Será Dumuzi, o Rei, que te sulcará!
Inanna: - Pois bem!
Sulca-me a vulva, sim tu, quem eu escolhi!...
In Georges Duby, Jean Bottéro, Amour et Sexualité on Occident, Société
d’Éditions Scientifiques, Paris, 1991, Amor e Sexualidade no Ocidente,
Terramar, Lisboa, 1998, ISBN 972-710-053-8.
Cortesia de Terramar/JDACT