«Aqui e além, no livro maravilhoso que é a Peregrinação, de Fernão
Mendes Pinto, surgem certas passagens, singulares de todo e suscitadoras da
mais viva curiosidade. Umas são obscuras, voluntariamente opacas, como
pinceladas neutras num retábulo; outras acusam improfundáveis hiatos, como se
se houvesse quebrado ali o fio da meada; ainda em muitos e por vezes sucessivos
capítulos se nos oferecem formas divergentes de memorialismo, o autor
transitando da pessoa do singular, em todo o livro a nuncupativa, para a do plural,
ou até para uma figura que entra a fazer as vezes de protagonista.
Exemplo do primeiro caso: ...havendo
ano e meio, pouco mais ou menos, que eu estava no serviço desta senhora, me sucedeu um caso que me pôs a vida
em tanto risco que, para a salvar, me foi forçado sair-me naquela mesma hora de
casa, fugindo com a maior pressa que pude... Que acidente foi esse que o
obrigou a dar tão precipitadamente às
de vila-diogo? Mendes Pinto teria a essa altura os
seus catorze anos, quando muito. Jacques Boulanger, que publicou um
escorço da obra sob o título Les Voyages adventureux de Fernand Mendes
Pinto, comenta a este propósito: On
craint de deviner porquoi. Bm verdade, tratando-se de um mocinho de tão
tenra idade, a nós custa-nos a compreender o que o publicista francês parece
ter no entendimento. Já o silêncio que faz correr, como uma cortina, sobre a
tomada da lanteia em que viaja a noiva chinesa, e sobre as moças cativadas na
cidade de Nondai, se anima de brutal e lúbrica animalidade. António de Faria
perdera todos os respeitos, menos o religioso. Ainda quando mata ou rouba,
persigna-se primeiro.
As pausas reticentes da Peregrinação, e até os saltos, são
de resto fáceis de explicar. Mendes
Pinto quando escreveu as suas aventuras, escreveu-as para serem lidas, e
mesmo serem dadas à estampa. Além da autocensura que cada autor vai exercendo
sobre o que escreve em holocausto à moral corrente, às leis, às conveniências
sociais e até, ao ornato literário, a censura oficial, à altura da primeira
impressão, tricúspide como a língua dos dragões, Santo Ofício (maldito), Ordinário e Paço, não deixaria de expungir,
suprimir, alterar, fazer mascar e remascar a prosa airadíssima.
Quanto à variação psicológica, ela é bem sensível no longo episódio em
que António de Faria desaparece tão misteriosamente como aparece. Até
aí, Mendes Pinto é o indiscutível
contra-regra do seu guinhol; eu, eu, eu. Depois, António de Faria
torna-se o centro do universo português nos mares da China. De página para
página avulta em denodo, força e indomável carácter na flibusta, grande condottiére. A pintura é tão real e colorida,
composta com aquelas tintas especiais que só assim traduzem a lucilação da vida
interior , tão abundante no pormenor subjectivo, que ora e sempre se inculca
aos olhos abertos do entendimento a tese uma vez formulada: Fernão Mendes Pinto e António Faria não
serão uma e a mesma pessoa? Formoso livro de espontaneidade, como não
há segundo na língua, a Peregrinação é o tombo vivo onde Mendes Pinto, depois de andar vinte
anos pela Ásia, soldado, negociante, pedinte, embaixador, cortesão, jesuíta,
pirata, treze vezes cativo, dezassete
vendido, deixa como que a acta das sete partidas que correu. Escrevendo na
casinha do Pragal, frente ao Tejo, pobre, sem ilusões e submisso à dura lei da
necessidade, não se esquece que tem de granjear o beneplácito dos poderosos.
Podia lá, embora repeso, embora contrito, suponhamos, fugir a dourar ou
esconder os desmandos do génio
impetuoso e tantos lances da sua vida irregular?» In Aquilino Ribeiro, Portugueses
das Sete Partidas, Viajantes, Aventureiros, Troca-tintas, 1950, Livraria
Bertrand, Lisboa, 1969.
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