segunda-feira, 12 de maio de 2014

Fernão Mendes Pinto. A sua máscara de pirata. Aquilino. «Escrevendo na casinha do Pragal, frente ao Tejo, pobre, sem ilusões e submisso à dura lei da necessidade, não se esquece que tem de granjear o beneplácito dos poderosos. Podia lá…»

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«Aqui e além, no livro maravilhoso que é a Peregrinação, de Fernão Mendes Pinto, surgem certas passagens, singulares de todo e suscitadoras da mais viva curiosidade. Umas são obscuras, voluntariamente opacas, como pinceladas neutras num retábulo; outras acusam improfundáveis hiatos, como se se houvesse quebrado ali o fio da meada; ainda em muitos e por vezes sucessivos capítulos se nos oferecem formas divergentes de memorialismo, o autor transitando da pessoa do singular, em todo o livro a nuncupativa, para a do plural, ou até para uma figura que entra a fazer as vezes de protagonista.
Exemplo do primeiro caso: ...havendo ano e meio, pouco mais ou menos, que eu estava no serviço desta  senhora, me sucedeu um caso que me pôs a vida em tanto risco que, para a salvar, me foi forçado sair-me naquela mesma hora de casa, fugindo com a maior pressa que pude... Que acidente foi esse que o obrigou a dar tão precipitadamente às de vila-diogo? Mendes Pinto teria a essa altura os seus catorze anos, quando muito. Jacques Boulanger, que publicou um escorço da obra sob o título Les Voyages adventureux de Fernand Mendes Pinto, comenta a este propósito: On craint de deviner porquoi. Bm verdade, tratando-se de um mocinho de tão tenra idade, a nós custa-nos a compreender o que o publicista francês parece ter no entendimento. Já o silêncio que faz correr, como uma cortina, sobre a tomada da lanteia em que viaja a noiva chinesa, e sobre as moças cativadas na cidade de Nondai, se anima de brutal e lúbrica animalidade. António de Faria perdera todos os respeitos, menos o religioso. Ainda quando mata ou rouba, persigna-se primeiro.
As pausas reticentes da Peregrinação, e até os saltos, são de resto fáceis de explicar. Mendes Pinto quando escreveu as suas aventuras, escreveu-as para serem lidas, e mesmo serem dadas à estampa. Além da autocensura que cada autor vai exercendo sobre o que escreve em holocausto à moral corrente, às leis, às conveniências sociais e até, ao ornato literário, a censura oficial, à altura da primeira impressão, tricúspide como a língua dos dragões, Santo Ofício (maldito), Ordinário e Paço, não deixaria de expungir, suprimir, alterar, fazer mascar e remascar a prosa airadíssima.
Quanto à variação psicológica, ela é bem sensível no longo episódio em que António de Faria desaparece tão misteriosamente como aparece. Até aí, Mendes Pinto é o indiscutível contra-regra do seu guinhol; eu, eu, eu. Depois, António de Faria torna-se o centro do universo português nos mares da China. De página para página avulta em denodo, força e indomável carácter na flibusta, grande condottiére. A pintura é tão real e colorida, composta com aquelas tintas especiais que só assim traduzem a lucilação da vida interior , tão abundante no pormenor subjectivo, que ora e sempre se inculca aos olhos abertos do entendimento a tese uma vez formulada: Fernão Mendes Pinto e António Faria não serão uma e a mesma pessoa? Formoso livro de espontaneidade, como não há segundo na língua, a Peregrinação é o tombo vivo onde Mendes Pinto, depois de andar vinte anos pela Ásia, soldado, negociante, pedinte, embaixador, cortesão, jesuíta, pirata, treze vezes cativo, dezassete vendido, deixa como que a acta das sete partidas que correu. Escrevendo na casinha do Pragal, frente ao Tejo, pobre, sem ilusões e submisso à dura lei da necessidade, não se esquece que tem de granjear o beneplácito dos poderosos. Podia lá, embora repeso, embora contrito, suponhamos, fugir a dourar ou esconder os desmandos do génio impetuoso e tantos lances da sua vida irregularIn Aquilino Ribeiro, Portugueses das Sete Partidas, Viajantes, Aventureiros, Troca-tintas, 1950, Livraria Bertrand, Lisboa, 1969.

Cortesia da LBertrand/JDACT