Foram, de facto, os Portugueses os primeiros a desbravar o Atlântico?
«(…) O caso mais bem documentado e com bases mais seguras do ponto de
vista arqueológico diz respeito a uma época posterior e a uma origem diferente:
as navegações escandinavas nos finais do 1.º milénio da nossa era. É hoje
aceite com poucas reservas que Erik Thorvaldsson (conhecido como Erik, o Vermelho),um viking exilado da sua
terra natal, a Noruega, empreendeu viagens de exploração e colonização da
Islândia e da Gronelândia, e que o seu filho Leif Eiriksson alcançou o
continente americano, mais precisamente a região hoje conhecida como
Newfoundland, no actual Canadá. Esta história está descrita nas chamadas Sagas
de Vinland, nome dado pelos Vikings àquela terra, e atestada do ponto
de vista arqueológico, com a descoberta em 1960,
de uma colónia escandinava em L'Anse aux Meadows, hoje classificado como
Património Mundial pela UNESCO. Foi, no entanto, uma iniciativa sem
consequências. Até às viagens portuguesas do século XV, o Atlântico permaneceu
um oceano misterioso e inexplorado. Apesar dos contactos prolongados entre as
cidades italianas e a Flandres, por um lado, e o desenvolvimento das cidades na
orla atlântica de Marrocos, mais a sul, a Europa continuava a desconhecer e a
temer o oceano. Este manteve, durante ainda muito tempo, o epíteto que lhe
deram os navegadores andaluzes e magrebinos: o de al-bahr-al-Mugbim, o Mar Tenebroso.
O que explica o pioneirismo dos Portugueses?
A explicação mais simples e vulgarizada é, simplesmente, a da coragem.
Numa das suas séries televisivas, produzida há cerca de duas décadas, José
Hermano Saraiva falava a bordo do navio-escola Creoula, em pleno
alto-mar, para discorrer sobre as viagens portuguesas do século XV. Num dos
episódios, um elemento da tripulação do navio, com aquela espontaneidade típica
das perguntas combinadas, pergunta-lhe porque haviam sido os Portugueses a
tomar a dianteira; seriam os marinheiros portugueses mais valentes do que outros? Ainda há poucos meses, uma
revista de divulgação juvenil anunciava na capa: os Portugueses são os mais corajosos porque descobriram o mundo
inteiro. E na altura não havia GPS. Qualquer pessoa que tenha lido as Viagens na Minha Terra lembrar-se-á
do episódio da discussão entre campinos ribatejanos e pescadores de Aveiro,
precisamente sobre força e valentia; estes últimos saem vencedores da contenda,
quando argumentam que não há comparação possível entre a força de um touro e a
força do mar. De facto, enfrentar o mar implica riscos, incertezas e uma grande
dose de coragem; mas é um ponto de discussão que se coloca ao nível da conversa
informal, ou no decorrer de uma viagem pelo Tejo, como ocorre na obra de
Almeida Garrett ,e não no plano das causas explicativas e das motivações de um
processo profundo, lento e complexo que levou a Europa a extravasar as suas
fronteiras e a modificar o rumo da História mundial, e onde os Portugueses desempenharam
papel central e pioneiro.
Não adianta muito, portanto, reclamar a coragem e a bravura dos navegadores
do século XV. Também não é especialmente esclarecedor invocar a longa tradição
marítima portuguesa, a sua extensa linha de costa debruçada sobre o Atlântico e
a importância do mar para as populações costeiras: não só nada disto é
particularmente marcante nem excepcional, se comparado com Biscainhos, Bretões
ou Zelandeses, como não esclarece nada acerca do factor tempo: porquê os Portugueses e porquê naquela
altura? De um modo geral, são invocadas explicações mais abrangentes:
interesses económicos, curiosidade, espírito religioso, motivação política ou
envolvimento social. Porém, não consta que, em comparação com Portugal, os
mercadores da Flandres fossem menos empreendedores, os interesses dos reis de Castela
fossem mais modestos, os Ingleses tivessem fervor religioso inferior ou os
sábios franceses fossem menos curiosos e interessados no descobrimento do
mundo.
Por muito que possa ofender algum brio nacionalista mais sensível, nada
fazia prever, na viragem do século XV, que seriam os Portugueses quem tomaria a
dianteira na exploração marítima do mundo e que, um século mais tarde, Portugal
partilharia o mundo em zonas de influência com a vizinha Castela. Então, se não
se tratou de um caso de bravura excepcional que permitiu enfrentar medos e
temores, comuns e enraizados, e levou os Portugueses a arriscar o que outros
não se atreveriam, e se os interesses, práticas, conhecimentos e motivações
presentes no Portugal da época não diferiam substancialmente dos de outras
paragens na Europa, o que explica o arranque das viagens de exploração do Atlântico e da costa africana?» In
Paulo Jorge Sousa Pinto, Os Portugueses Descobriram a Austrália? Porque foi
Conquistada Ceuta? O arranque dos Descobrimentos, A Esfera dos Livros, Lisboa,
2013, ISBN 978-989-626-498-7.
Cortesia de E. dos Livros/JDACT