O Maravilhoso no Ocidente Medieval
«(…) É por exemplo o caso de dois sectores que me parecem mais
característicos da Idade Média que de outras épocas: o maravilhoso quotidiano e
o maravilhoso político. As manifestações do maravilhoso parecem muitas vezes
sem ligação com a realidade quotidiana mas revelam-se dentro dela (um elemento
que será redescoberto por vezes pelo fantástico romântico ou pelo surrealismo
moderno). Se continua a haver o movimento de admiração dos olhos que se
arregalam, a pupila dilata-se cada vez menos e este maravilhoso, conservando
embora o seu carácter vivido de imprevisibilidade, não parece particularmente
extraordinário. Interessante um exemplum
de Cesário de Heisterbach, no Dialogus Miraculorum
(início do século XIII). Um jovem nobre, converso cisterciense, está a guardar
carneiros reunidos numa eira da abadia cisterciense a que pertence, quando vê
aparecer diante de si um primo recentemente falecido. Com toda a tranquilidade,
pergunta-lhe: Que fazes aqui?
E o outro, em resposta: Morri, vim para
dizer que estou no Purgatório e é preciso que rezeis por mim. Faremos o que é necessário. O
defunto afasta-se assim no prado e desaparece no horizonte como se fizesse
parte da paisagem natural, sem que o mundo se mostre minimamente perturbado por
esta aparição. Nos Otia Imperialia, um texto um pouco anterior mas ainda do início
do século XIII, entre as numerosíssimas anotações de mirabilia, o autor Gervásio de Tilbury conta que nas cidades do
vale do há seres maléficos, os dragões, que agridem as crianças, mas não são,
salvo excepções, os tradicionais papões. Introduzem-se de noite nas casas, com
as portas fechadas, tiram as crianças dos berços e levam-nas para a rua ou para
as praças, onde são encontradas no dia seguinte de manhã, tendo-se mantido as
portas fechadas durante todo este tempo. Os vestígios da passagem dos dragões
são quase imperceptíveis, o maravilhoso perturba o menos possível a
regularidade quotidiana; e provavelmente é exactamente este o dado mais
inquietante do maravilhoso medieval, ou seja, o facto de ninguém se interrogar
sobre a sua presença, que não tem ligação com o quotidiano e está, no entanto,
totalmente inserida nele.
Uma outra fronteira do maravilhoso é o maravilhoso político. Os
chefes sociais e políticos da Idade Média utilizaram o maravilhoso para fins
políticos. Trata-se de uma forma de recuperação do maravilhoso, mas de uma
forma extrema. É sabido e quase normal, óbvio, que as dinastias reais
procuraram forjar para si origens míticas. Famílias nobres e cidades
imitaram-nas. Mas o mais surpreendente é que essas origens míticas estão
radicadas por vezes, e não frequentemente, num maravilhoso inquietante e
ambíguo. É muito conhecida a história de Mélusine, a maravilhosa mulher
medieval, provavelmente avatar de uma deusa-mãe, de uma deusa da fecundidade,
reivindicada como antepassada, como uma espécie de totem, por diversas famílias nobres. Uma delas conseguiu-o, a dos Lusignani,
que se apoderaram de Mélusine, deram-lhe o seu nome, vista que Mélusine
não é nomeada antes da altura em que se une, ousaria dizer, com os Lusignani.
Assim, o maravilhoso torna-se instrumento de política e de poder. O exemplo
mais belo deste maravilhoso político ambíguo encontramo-lo em Geraldo de
Cambrai (Geraldo de Barri), no início do século XIII. Trata-se da
ascendência melusiana dos Plantagenetas,
que se tornaram reis de Inglaterra. A dinastia dos Plantagenetas,
segundo Geraldo, teria tido como antepassada, no século XI, uma
mulher-demónio, e por outros testemunhos sabemos que essa lenda era bem
conhecida e que Ricardo, Coração de Leão,
lhe fazia referência e se servia dela na sua acção política para explicar o modo,
muitas vezes desconcertante, de se comportar, para justificar os aspectos por
vezes extravagantes das suas opções e daquilo que acontecia naquela família
bastante escandalosa, em que nomeadamente os filhos se armavam contra o pai e
se combatiam incessantemente. Ricardo gostava de dizer: Nós, filhos da mulher-demónio... Uma coisa menos conhecida, em
contrapartida, é o facto de Filipe Augusto ter procurado utilizar este mito das
origens maravilhosas contra os Plantagenetas, sobretudo contra João Sem Terra; e em particular quando
preparou o falhado desembarque do filho Luís em Inglaterra, montou uma
autêntica campanha psicológica em que os emissários e os partidários dos
Franceses diziam que era preciso acabar com os filhos da mulher-demónio». In
Jacques le Goff, Il meraviglioso e il quotidiano nell’occidente medievale,
Gius, Laterza, 1983, Roma, O maravilhoso e o quotidiano no ocidente medieval,
Edições 70, Lisboa, 2010, ISBN 978-972-44-1563-5.
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