sexta-feira, 30 de maio de 2014

O Mistério do Infante Santo. Jorge Sousa Correia. «… as trombetas e charamelas dos músicos dentro do Paço Real, juntamente com os sinos da Sé, ali mesmo em baixo, começaram a troar os seus fortes sons, sinais indistintos do momento em que o rei seria aclamado»

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O Princípio
«(…) Após uma breve pausa para retomar o fôlego, o judeu afinou as cordas vocais para concluir o que no seu entender correspondia à salvação do infante: - Ordenar-vos-ia se a minha autoridade chegasse a tanto. Como não chega, rogo-vos, rastejo a vossos pés para que adieis o acto que estais prestes a concretizar. O meu amo, ponderai. É que não vos custa nada adiar por umas horas a cerimónia, para serdes feliz. Sem pronunciar palavra, o príncipe, via-se bem, tinha chegado ao último dos limites que concedera a Abraão Guedelha e a si próprio. Num gesto compreensível, mandou levar o inconsolável cientista, passando das mãos nobres dos infantes para as mãos rudes dos guardas reais e dali para longe do rei. Debilitado, Guedelha, mesmo assim, quis mostrar que a força cansada do corpo não se reflectia na voz. Encheu os pulmões de todo o ar que pôde e num brado disse as palavras malditas: - Não me dais ouvidos? Não quereis ser feliz? Rejeitais as poderosas razões dos astros? Então, o teu reinado será de grandes tormentos.
O silêncio que se seguiu às palavras do mestre significou mais um pesadelo do que um momento de reflexão, pois uma maldição acabava de cair sobre aquele que iria governar Portugal. Ninguém naquela reunião entendia de astrologia, a não ser o mestre, mas todos ficaram silenciosos, ainda mais porque em forma de premonição acabavam de escutar um mau agoiro. Agitado, levado aos encontrões, ao mestre de nada lhe valeu estrebuchar. Convinha até que o não fizesse, porque os limites da sua segurança física estavam azero, e dali em diante, tudo quanto dissesse voltar-se-ia contra si, expondo a sua integridade claramente ameaçada. Não desconhecia que se tinha excedido, receava até pelo que lhe viesse a acontecer, muito embora confiasse na bondade do rei e no momento de grande elevação que se vivia na corte. Martirizava-se, no entanto, quando pensava naquele homem sem tempo, por quem era capaz de tudo, até de morrer. A cerimónia seria antes do meio-dia, pensou Guedelha, que fosse. Servia-lhe tão bem como até ali, mas, infelizmente, adivinhava o Mestre, mais vezes, em condições bem mais difíceis e por menos tempo.
Livre dos comentários do físico, o rei Duarte abandonou o local da controvérsia, num passo levitado, deixando que o seu corpo cumprisse o que a mente lhe pedia. Saboreando cada contracção dos músculos, sentou-se no cadeirão real para dar início às cerimónias. Ali perto, do outro lado das muralhas, ouviam-se as vozes dos populares. Não tinham os problemas transcendentais dos senhores do castelo, estavam limpos tanto quanto podiam, vestiam-se do que tinham de melhor, não renegavam a sua condição de servidores de todos os serviços. Homens e mulheres, jovens ou velhos, gritavam estridentes vivas ao infante, entremeadas de excessos verbais que lhes ficava bem e os divertia. Os homens, sempre em maioria, entontecidos pela excitação da maralha e pelo vinho que corria nas gargantas, de borla, pela graça de sua senhoria o príncipe Duarte, empunhavam nas mãos engrossadas por trabalhos agressivos as suas alfaias, reconhecimento provado de uma identidade social e profissional. Cavadores ou abegões, regateiras ou vendedeiras, estavam todos convictos de que a sua presença era indispensável naquele momento de exaltação.
Os moços, menos atentos aos actos institucionais, fossem eles mancebos da lavoura, das ovelhas ou aprendizes das mais diversas profissões, perseguiam-se entre a multidão em correrias e esquivas nem sempre conseguidas. Entretanto, dentro do castelo, tudo se preparava para confirmar a sucessão do filho varão de João I e de D. Filipa de Lencastre. Depois de um silêncio reclamado, as trombetas e charamelas dos músicos dentro do Paço Real, juntamente com os sinos da Sé, ali mesmo em baixo, começaram a troar os seus fortes sons, sinais indistintos do momento inesquecível em que o rei seria aclamado». In Jorge Sousa Correia, O Mistério do Infante Santo, A Revelação dos Pecados da Ínclita Geração, Clube do Autor, Lisboa, 2013, ISBN 978-989-724-067-6.

Cortesia de C. Autor/JDACT