«Do casamento com D. Aldonça houve Sancho I nove filhos, dos quais o
segundo foi Fernando que veio a
casar com Madame Joana, condessa de
Flandres, filha de Balduíno II, Braço de
Ferro, imperador de Constantinopla. Quem era afinal este príncipe e esta Madame Joana que faz lembrar, no estilo
de Duarte Nunes de Leão, os figurantes dos folhetos de cordel História da Imperatriz Porcina e Rogério,
duque de Mântua, que os cegos,
ainda no começo deste século, pregoavam
no Largo de S. Domingos? Fernando,
como a corte portuguesa não passasse duma tortulheira em que se sentia
asfixiar, havendo atingido a maioridade, mal se lhe proporcionou ensejo, desarvorou
do Reino. Tanto ele como seu irmão Pedro tinham na massa do sangue o
génio da aventura que levara seu bisavô à Hispânia e boa porção dos seus à Terra
Santa a acutilar os sarracenos, fazendo nome e fortuna. Oriundo do ramo pobre
de Borgonha, para eles, antes de mais nada, a questão era talhar a sua parte no
Reino da Terra, que o do Céu estava. garantido pelas lançadas nos infiéis. Era Fernando moço ardente e expedito,
excelente cavaleiro e reptador, e abandonando com a terra em ebulição, calcada
pelas algaras e esterilizada pelos incêndios, a casa paterna, estreita demais
para o gerifalte que era, tomou o caminho do Norte. Fez o contrário do irmão
que, esse, tomou para o Sul, a servir o Miramolim, coisa que não lembrava ao
Diabo, mas a um borgonhês, aventureiro das unhas dos pés aos cabelos do
toutiço, oportunista par a lá de todo o credo e honra.
Tinha uma tia em França, filha mais nova de Afonso Henriques, viúva de
Filipe de Alsácia, conde de Flandres e de Henau, Tareja de seu nome baptismal, mas
chamada Matilde, or Mahaut em flamengo, a rogo do marido, que não achara aquele
nome suficientemente eufónico e curial. Também outra filha de Afonso Henriques,
Urraca, tivera de mudar de nome, por bárbaro e rascanhante ao ouvido. Do
alfobre gótico prenominal, apenas Cunegundes persiste na onomástica, mundificado
do jocoso que adquiriu no Candide
de Voltaire por princesas que nos nossos dias ostentam tal nome com
garbo, posto que erráticas e devolutas.
Ao que rezam as crónicas, Matilde era uma mulher de armas, tão formosa
como altaneira de génio e soberbia. Na qualidade de infanta de Portugal,
titulava-se de rainha à moda da sua terra. Donde injustamente a exproba Marcus
Vaernewyck na Descriptio Flandriae,
a título de que com menos direito do que ambição exigia esta princesa que
sempre a chamassem rainha. Tinha sob tutela duas órfãs de Balduíno IX, Braço de Ferro, seu cunhado, morto a
caminho da Terra Santa como partícipe da Quarta Cruzada. A mais velha, que
devia suceder ao pai no condado da Flandres, era a tal Madame Joana dos nossos cronistas. Ainda na infância, Filipe
Augusto, calculista e tenebroso, exigiu da condessa que lhe fossem confiadas,
não viessem elas mais tarde, com imprevisto casamento, estorvá-lo nos projectos
que acalentava de arredondar o território de França à custa do Artois e na pele
da Flandres. E durante dez anos as meninas estiveram sob o olho vigilante do
hujo, calvo, glutão e beberrão, manhoso e traiçoeiro na política, tão atulhado
de superstições como de vícios». In Aquilino Ribeiro, Portugueses das Sete
Partidas, Viajantes, Aventureiros, Troca-tintas, 1950, Livraria Bertrand,
Lisboa, 1969.
Cortesia da LBertrand/JDACT