jdact
Resumo
«O ciclo de romances A Velha Casa, considerado
por José Régio (1901-1969) a obra
capital da sua produção literária, é um texto que articula invenção romanesca
com escrita referencial, situando-se, assim, no domínio da ficção
autobiográfica. A preocupação do autor em revelar uma imagem de si não se
manifesta unicamente em textos como as Páginas
do Diário Íntimo e a Confissão
dum Homem Religioso, estando igualmente presente na lírica, na ficção
narrativa, na dramaturgia e até na sua ensaística. É pela combinação de todos
estes textos que se apreende o eu
superlativo de Régio.
O trabalho começa por perspectivar a condição e a poética da literatura autobiográfica
para chegar à compreensão da obra do escritor de Vila do Conde e Portalegre, em
especial aos seus cinco romances do ciclo A
Velha Casa, publicados entre 1945 e 1966».
O objectivo é a leitura
crítica do ciclo romanesco A Velha Casa,
de Régio, segundo critérios de
análise e interpretação que possibilitem a identificação da sua dimensão
autobiográfica. Uma nota se impõe, desde já, a este respeito, tanto em relação às
perspectivas teóricas que consideram a impossibilidade de qualquer escrita
autobiográfica (porque o escritor não pode narrar a vida e a escrita será
sempre uma forma de a inventar), como às que garantem que tudo o que o
romancista escreve é autobiográfico (pois o escritor apenas é capaz de falar
do que conheceu, das experiências por que passou e das vivências que teve).
Não se orientando em ordem a qualquer uma destas posições, e considerando
embora a dificuldade inerente ao estabelecimento duma taxinomia dos subgéneros
romanescos (romance de formação, histórico, psicológico, social, político,
etc.), admite-se como hipótese válida a existência de instrumentos e métodos
analíticos que permitem configurar no género romanesco um subgénero comumente
designado na crítica de língua portuguesa como autobiográfico. Sendo o que se
procurará demonstrar a respeito de A
Velha Casa, cumpre salientar que qualquer romance pode admitir
mais de uma classificação de género, segundo a perspectiva que se adopte ou a
prevalência que se dê a uns ou outros aspectos do discurso e da história
narrada. Neste sentido, o ciclo romanesco de Régio terá também características de romance de formação, de
romance psicológico e, em certa medida, até de romance político, tendo em conta
que uma parte não desprezível do texto aborda e questiona opções de ideologia e
organização da sociedade. Nos critérios de fixação do autobiográfico,
atender-se-á ao grau de identificação do protagonista com o autor empírico (por
via do nome, da idade, da profissão e da biografia), mas também à forma de
enunciação (a voz e o modo), ao cruzamento da ficção com a História e a
realidade espácio-temporal, tendo em conta o metadiscurso, o paratexto e a
intertextualidade endógena. Não se desprezará, pois, a biografia do autor, embora
o propósito a seguir não seja nem biografista (conhecer o autor para compreender
a obra), nem positivista (estudar a obra para compreender as condicionantes
que afectaram o autor). Admite-se o recurso à biografia como pressuposto de
identificação dum subgénero, embora o método a seguir privilegie a comparação
textual entre aquilo que o autor diz por voz própria (escritos autobiográficos,
ensaística, artigos de jornais) e o que deixa escrito nas suas ficções. É este
exercício comparatista que permite fixar de forma segura a presença do autor empírico
no seu texto. Face a um tipo de narrativa ficcional marcada pela mais pura invenção,
há que reconhecer a especificidade das que se deixam atravessar, em maior ou menor
escala, pela ilusão do espelho: miroirs d´encre, segundo a
expressão adoptada por Michel Beaujour no título de um seu livro.
Factor de interesse acrescido no romance autobiográfico é ele poder
servir para o autor dizer de si aquilo que não se dispõe a dizer nos seus
escritos estritamente autobiográficos. De facto, a obra de ficção não
compromete o autor empírico perante nenhuma esfera do real, permitindo uma
sinceridade (ainda que veiculada por uma personagem outra) que nem
sempre se faz presente na autobiografia. A dimensão autobiográfica de A Velha Casa, a sua
genética e recepção crítica serão ilustradas
em estudo complementar com a reprodução anotada de excertos de mais de cem
cartas correspondentes a um conjunto de 888 enviadas por Régio a Alberto Serpa entre 18
de Setembro de 1927 e 22 de Junho de
1969. Um aspecto que se abordará é o
preconceito, muito vivo ainda na primeira metade do século XX, em relação ao
romance que pudesse ser entendido como autobiografia
disfarçada. As críticas de João Gaspar Simões aos romances de A Velha Casa, assim como
as que fez aos de A Criação do Mundo,
de Miguel Torga, assentaram em certa medida na denúncia da propensão lírica
destes romancistas, no facto de eles não se narrarem com os olhos de outros e
obsessivamente se reproduzirem na pele das suas personagens. Neste sentido, a
transposição de quadros da vida para as obras romanescas constituiria uma
quebra dos protocolos da poética e uma violação inadmissível das bienséances.
Esta posição crítica a respeito do romance autobiográfico induzirá os autores a
uma atitude paradoxal: se por uma lado se procuram mostrar nas suas obras, é
com dificuldade que o assumem, como se apostassem numa retórica do oculto e do
indizível. Escondem-se do leitor, embora tudo façam para ser vistos, dispondo-se
tanto a negar como a sugerir a dimensão autobiográfica das suas ficções. O autor
de A Velha Casa não
permaneceu imune, como se verá, ao estigma que então se abatia sobre os que
privilegiavam o particular e o individual face ao geral e ao universal». In Manuel José Matos Nunes, José Régio, O Eu Superlativo
- O Ciclo Romanesco ‘A VELHA CASA’ e
outros Escritos Autobiográficos, Universidade Nova de Lisboa, Faculdade
de Ciências Sociais e Humanas, FCSH, 2012.
Cortesia de FCSH/JDACT