quarta-feira, 11 de junho de 2014

O Mundo em que Vivi. Memórias. Ilse Losa. «A dela era toda de linho caseiro e, portanto, são só bonita como também resistente, o que levava a avó a profetizar que eu, depois de crescida e já dona de casa, ainda me deleitaria com os lençóis de entremeios feitos à mão»

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«O meu avô, homem alto e magro, de cara larga, ossuda e um tanto avermelhada, olhos claros e quase sempre tristes, tinha o costume de levantar as sobrancelhas espessas quando dizia alguma coisa importante. Isso impressionava-me; achava bonito, talvez extravagante e por isso mais me desgostava ver-lhe as pingas de sopa presas no grande bigode pendente pare cada lado da boca. Não ligava com ele, sempre apurado e cheio de brio, que penteava o seu cabelo grisalho, muito farto, com o máximo cuidado. Limpa a boca, avô, dizia eu. Ora, ora, respondia ele. A avó contrastava com a figura esguia e imponente do avô. Era baixa, multo baixa mesmo, tinha uma cara miúda, cheia de rugas, e puxava o cabelo branco para cima da cabeça onde o juntava num, puxozinho redondo apertado. Se tivesse vivido na Península e sido pobre, não teria necessitado da rodilha para transportar carretos na cabeça. Usava sempre vestidos escuros que cobria, em casa, com um avental da cor da cinza.
Eu, a julgar pelas velhas fotografias, não passava duma menina frágil, de cabelo loiro. Nas feições lisas, infantis, retocadas pelo fotógrafo da aldeia, não descubro mais nada que valha a pena destacar. Vivíamos os três numa pequena casa com a varanda deitada sobre a rua e coberta com vides. Ali minha avó passava as tardes de Verão a fazer meia ou a costurar. Ao certo não me recordo se ela costurava, mas suponho que o fazia, pois não me lembro de nenhuma costureira que lhe tivesse feito esse serviço. Seja como for: que fazia meia nunca o poderei esquecer. Vejo-a sentada na cadeira de espaldar, as agulhas a baterem rapidamente, enquanto observava o que se ia passando na rua. Tão treinada estava em fazer meia que nem precisava de olhar. Aliás, as meias eram infalivelmente pretas, fossem para ela própria, para o avô ou para mim. Por isso eu, apesar de tão pequena ainda, tinha de andar sempre de meias pretas. Isso causava-lhe desgosto porque nenhuma das crianças com quem convivia usava meias pretas e eu queria ser igual a elas. Cheguei a falar à avó nesse meu desgosto, mas ela repreendeu-me: - Não digas tolices, Rose. Se as outras crianças não usam meias pretas é porque as mães-delas não sabem ser práticas e económicas. Eis duas palavras que, cedo, aprendi a detestar: prático e económico.
Da varanda entrava-se, por uma porta alta e escura, para o corredor estreito e comprido, género funil. Das duas grandes plantas, em vasos pintados de roxo, a cada lado dessa porta, ficou-me gravado, na memória o seu cheiro triste, quase fúnebre. Talvez elas tivessem esse cheiro por nunca darem flores ou por as suas folhas fininhas serem tão profundamente escuras. Mas é difícil adivinhar quais os sentimentos e as reacções íntimas das plantas. O armário enorme, encostado à parede, também se me gravou na memória. Dum castanho tão brilhante como um espelho, e tão imponente, pelo seu tamanho, chegava a ser misterioso. Só a avó lá podia mexer. Abria-o com uma das chaves que trazia, num molho; no bolso do avental. Por vezes, chamava-me para me mostrar aquilo que considerava a coisa mais preciosa duma dona de casa: a roupa branca. A dela era toda de linho caseiro e, portanto, são só bonita como também resistente, o que levava a avó a profetizar que eu, depois de crescida e já dona de casa, ainda me deleitaria com os lençóis de entremeios feitos à mão, das toalhas, toalhinhas, guardanapos, toalhas de rosto e de cozinha. Eu fazia um esforço para conseguir apreciar toda aquela brancura, mas o único encanto que lhe conseguia encontrar era o cheiro. É que minha avó costumava encher saquinhos com alfazema e metê-los por entre as peças de roupa, que cheiravam a campos e relvados floridos». In Ilse Losa, O Mundo em que Vivi, Portugália Editora, Lisboa, Memórias, 1964.

Cortesia Portugália/JDACT